sábado, 11 de setembro de 2010

A história de O


Aconteceu no tempo em que os bichos falavam. O era o galo do terreiro. Sarado, charmoso, inteligente, olhos verdes e bico sensual, arrasava os corações e as moelas não só da galinhama, mas também das pombas-rolas, das peruas, das patas-chocas e das andorinhas-sinhás, casadas, solteiras ou tico-tico-no-fubá que frequentavam o terreiro. Bem jovem O apaixonara-se e se casara com uma galinhazinha índia, da mesma idade que ele. Era uma esposa muito trabalhadeira, fiel e tão apaixonada que fazia vista grossa à sem-vergonhice de O. Em pleno sétimo setênio de vida, pronta para desfrutar a vida, a galinhazinha índia descobriu um câncer em estágio avançado e morreu. O não era dado a prolongar os sofrimentos. Seu lema era viver o dia presente. Mal passado o luto, voltou a desfrutar a vida. Comeu todas e mais algumas, nenhuma emplumada passou impune. Até a avestruz O experimentou. Pois bem, O viveu seu oitavo, nono e décimo setênio na farra. Torrou as economias com a galinhada, colocou centenas de pintos com seu sangue no mundo. Quando tudo parecia perdido, para surpresa de todos, ao iniciar o seu décimo primeiro setênio, O decidiu casar-se.

Foi um bafafá. Os frangos mais velhos, filhos legítimos de O foram contra: invocaram sem efeito a memória da galinha índia, o direito filial, a improbidade administrativa. Era pura safadeza, absurdo o velho galo desdentado (como se eles também não o fossem) inventar de casar. Ao invés da busca da espiritualidade característica do setênio, o velho galo mergulhava cada vez mais nos prazeres da matéria. A opinião geral era: o velho galo, que não servia nem mais pra canja, estava esclerosado.

O persistiu no intento, nunca dava ouvidos à opinião alheia. Vencidas as resistências, O apresentou a pretendente.  Foi outro furdunço. Uma franguinha mal saída do segundo setênio! O tinha idade para avô, quiçá bisavô da franguinha! Os frangos herdeiros romperam relações com O. Proibiram os pintos-netos e as galinhas-noras de falarem com O, de sequer tocarem no nome de O durante o jantar. Nem aí com o desprezo da família, sorrindo de crista a crista, O retirou-se para o exílio da casinhola do Itamaracá, seu último bem material, acompanhado de sua franguinha-teen, ao que tudo indica satisfeitíssima com o maridão.

O e a franguinha passaram alguns anos de inenarrável felicidade. Ao invés da degeneração natural da idade, O parecia rejuvenescer: as penas embranquiçadas enegreceram de novo, as rugas da crista esticaram-se como por passe de mágica, o barrigão desapareceu como se tivesse sido extirpado por um exímio cirurgião plástico, ah, os milagres do amor!, ah, os milagres da ciência!

A franguinha entrou em seu terceiro setênio, o dos novos e amplos horizontes: a graduação em psicologia, o mestrado, o professor do mestrado, pelo menos três setênios mais novo que O. Aí pouco adiantaram os milagres do amor ou da ciência. A franguinha trocou O pelo mestrado, pelo professor do mestrado. Divórcio litigioso. A franguinha universitária ainda arrancou os dois últimos bens que restavam a O: o milagre da juventude tardia e a casinha do Itamaracá.

O retornou ao convívio familiar, o velho galinheiro. Só, rejeitado, incompreendido. Do alto dos seus doze setênios, finalmente O via o efeito do tempo desfilar diante de seus olhos: as penas embranqueceram de novo da noite para o dia. A crista murchou, e nem com reza brava conseguia ser reerguida. As rugas, os pés-de-galinha alastraram-se. Para piorar, ainda descobriu uma doença respiratória crônica, cuja tosse, durante as longas madrugadas, transformaram seu portentoso canto matinal num cacarejar medíocre, pobre O. E ainda morria de saudades da franguinha. A decadência instalou-se.

Os frangos-herdeiros notaram: O estava ficando caduco. Talvez com intenções de reconquistar a franguinha recém-pós-graduada, passava horas anotando em seus caderninhos – uma revolucionária notação musical; uma gramática da língua falada; os planos de uma volta ao mundo em um veleiro construído com garrafas pet.

Os frangos herdeiros, as galinhas-noras, os netos-pintos balançavam a cabeça, desolados, pobre vovô O! Internaram num galinheiro de repouso. Naquela idade, diziam, nem para ração de cães ele servia mais. O até gostou do asilo. Tinha seu próprio poleiro, uma enfermeira gostosa para enfiar o termômetro debaixo da asa despenada. De vez em quando, quando a tosse amainava, até ensaiava o co-co-ro-có matinal, sempre aplaudido pelas outras aves velhas. Morreu dormindo. Sem culpa, sem rancor, sem raiva de ninguém. Tinha aproveitado todas as oportunidades que a vida na fazenda se lhe ofereceram previstas pelo mago, tinha-se deixado levar por todas as mudanças, os altos e baixos da roda da fortuna.

Depois disso acabou-se o tempo dos bichos falarem.

Nota: a linda imagem foi pirateada de http://ultradownloads.uol.com.br.

4 comentários:

Carolina Vianna disse...

Se eu tiro uma carta num dia e ela é muito boa, posso reaproveitá-la para o dia seguinte?

Gladstone disse...

É exatamente o que tenho feito - uma carta pode durar até uma semana inteira...

Carolina Vianna disse...

E se o dia seguinte não é bom, quem eu culpo?
Você acredita que o bonitinho me dispensou só porque eu não apareci no dia em que marquei com ele?
Você acha que dois dias de atraso é muita coisa?

Carolina Vianna disse...

E se o dia seguinte não é bom, quem eu culpo?
Você acredita que o bonitinho me dispensou só porque eu não apareci no dia em que marquei com ele?
Você acha que dois dias de atraso é muita coisa?