quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Necessidade de se abrir ao diálogo


O conselho de hoje do dois de copas, vigésimo quarto arcano, foi compreender o outro é o primeiro ato para atrair compreensão para si mesmo. O desenho é um dos mais bonitos do tarô. Pensei de manhã: o que escrever sobre isso, sem M achar chato? deixei para depois do almoço; com barriga cheia a história pessoal viria. Não veio. Então me lembrei de uma antiga, do tempo em que eu vivia tão sozinho e carente que chorava quando via beijo na novela, conversava com o espelho da porta do armário e acreditava no poder do pensamento positivo. Pode até não ter a ver com o conselho, ou ter a ver com o anterior, da roda da fortuna, ou ser uma mistura dos dois, não importa, vale pelo insólito da situação:

Era uma vez G. Nem precisa dizer que G era eu. G vivia um período de extrema solidão. Agravado por sobressaltado com a morte. Uma irritação de garganta, um torcicolo e G já pensava o pior: câncer nos gânglios linfáticos, na próstata, gripe suína ou coisa terrificante que o valesse.

G tentava amenizar a dor da solitude. Visitava os amigos, frequentava reuniões de colegas de trabalho, ia à missa, aos bares, fazia terapia 4 vezes por semana, telefonava dia sim dia não para a mãe, e nada de passar. Por fim, uma alma caridosa sugeriu fazer iôga. X. estranhou, pois na adolescência todo mundo pronunciava a palavra com a vogal aberta, ióga. Bobagem, questão fonética, a essência devia ser a mesma. Comprou roupas brancas, largas, folgadas, de fibras vegetais e matriculou-se. G precisava investir em si mesmo (o dois de ouros do tarô anterior), G precisava abrir-se ao diálogo.

Enquanto duraram a primeira e segunda aulas - posturas básicas, respiração, meditação ao final, G tranquilizou-se, só mesmo a pronúncia tinha mudado. Porém, na terceira aula, antes das posturas, a professora gordinha começou com uma digressão histórica e filosófica do sistema da iôga. Descreveu as esferas alimentares (os minerais, os vegetais, os animais). Os minerais estavam mais longe de nós e os animais mais próximos. No meio estavam os vegetais. Se G comesse um mineral, o máximo que lhe aconteceria era ele (o mineral) sentir-se comido, mas isso não teria problema, ninguém leva a sério os sentimentos dos minerais, isso não alteraria nada a existência eterna de G, o karma. Se G comesse um vegetal, o vegetal não apenas se sentiria comido mas reagiria. G imaginou: como seria uma beterraba esperneando ao ser refogada? uma cenoura implorando clemência diante do ralador?

Mas o horrível, o péssimo, o imperdoável era comer animal. Os animais possuem sangue, alma coletiva. Eles habitam um círculo evolutivo muito próximo do humano. Cada prato de moqueca, de galinha caipira, cada torresmo, orelha, costeleta de feijoada não-vegetariana comida por G equivaleria a 50 anos de atraso evolutivo. A professora gordinha concluiu a primeira parte da aula afirmando que ela, por exemplo, já tinha superado os grãos (o subestágio mais primitivo dos vegetais) e entrava nos tubérculos, o segundo. Falou sobre iogues tão elevados que somente se alimentam dos nutrientes suspensos no ar que respiramos, chamado de prana. Por fim, ensinou uma energização da água: encher o copo com água do filtro, de manhã, estender o copo na direção do sol, tomar um gole, bochechar, cuspir; tomar outro gole, gargarejar, cuspir; tomar o resto e engolir. Se tivesse à mão caneta e um caderninho, G teria anotado.

A segunda parte da explanação era sobre as quatro esferas do amor - o amor físico, animal, inferior, sexual (que só acontecia entre homem e mulher), o amor emocional, ainda humano, saído do coração, e que gerava os sentimentos (exemplificou: o ciúme, a posse, a paixão), o amor mental (óbvio, da mente) – que podia ser controlado, canalizado e utilizado como escada para a quarta, e inacessível esfera amorosa a nós, reles mortais - o amor espiritual (que apenas os iluminados alcançam: poder amar indistintamente o amigo e o inimigo, as coisas boas e as coisas ruins, etc).

Aí G fez os exercícios, as posturas. Depois a meditação. Quem disse que G relaxou? Pensava que sua entrada no nirvana estava definitiva e triplamente bloqueada: a) quantas reencarnações ainda teria que viver até recuperar o atraso do karma provocado pelas centenas de porcos, galinhas, perus e vacas, além dos caranguejos, das piabas, das lulas, dos salmões grelhados, dos camarões que já tinha comido? b) como poderia energizar o copo d’água matutino, sendo impossível vislumbrar o sol nascente das janelas da casa onde morava, de frente para a kit da loura cinquentona? e c) como poderia fazer ser aceita nas esferas superiores a modalidade amorosa que praticava, amar outro do mesmo sexo, que não se enquadrava nem no primeiro nível evolutivo?

Logo G que nunca tinha pensado sobre o assunto, queria só mesmo conhecer gente nova, esquecer a tristeza, passar o tempo, adquirir mais flexibilidade das articulações... Nem precisava dizer que depois daquele dia G não voltou. Deu as roupas brancas pra faxineira. Desistiu. Evoluir era difícil pra caramba. Decidiu fazer natação. Mesmo com a garganta ardente, o pescoço dolorido, os gânglios, o câncer, a hipoglicemia. Na água clorada e despranada G tinha esperança de parar de pensar sobre o ridículo que era sobreviver.

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