Era uma vez W. W vivia sozinho. O namorado de W tinha ido embora para sempre. Esta história aconteceu por volta das seis da manhã. W sonhava com planilhas excel, estagiários desnudos e ramais intermitentes. Tinha dormido ansioso aguardando Wlória, a nova faxineira, que, por telefone, no dia anterior, avisou que chegaria muito cedo.
A campainha tocou. W acordou sobressaltado. Levantou-se como uma mola. Vestiu a cueca, W dormia pelado. Correu a atender a porta. Feliz pela possibilidade de contratar uma profissional tão adiantada.
Mas ao invés de Wlória, era um rapaz. Conhecido, de vista. Andava pela quadra, entre o boteco com sinuca e a oficina de lanternagem. Era sempre visto acompanhado pelo mecânico com cara de ator pornô.
Pois, às seis da manhã de uma quinta-feira de verão, W abriu a porta da casa e ao invés de encontrar Wlória, a faxineira, viu o tal gajo, o amigo do mecânico. W tomou um susto. Pensou que podia ser continuação do sonho. Não beliscou o braço, pois achava ridículo, isso (beliscar o braço, príncipe encantado bater à porta) só acontecia em filme. Confirmou a realidade quando o rapaz falou:
"Estava voltando pra casa, pensei em você. Não quer companhia?"
Inocentemente W se perguntou: Como ele adivinhou? Como o rapaz soube que companhia era a necessidade mais básica de W naquelas primeiras semanas pós-divórcio? sim, W admitiu, W queria companhia. Não sabia porque, mas veio à mente de W a frase bíblica: quem nunca se sentiu sozinho às seis da manhã de uma quinta-feira que atirasse a primeira pedra.
Porém, mesmo com toda carência, àquela hora da madrugada W queria mesmo era aproveitar os próximos 30 minutos de sono.
Antes de qualquer atitude ou palavra proferida, W deveria ter raciocinado: a pessoa que está “voltando para casa” às seis da manhã de uma quinta-feira devia ter tido uma noite no mínimo pauleira.
Mas W era muito lerdo. Boi, no horóscopo chinês. O cérebro de W precisava esquentar antes de concatenar uma idéia com a outra. Enquanto fantasiava a história (mandar o rapaz entrar, dar uns amassos, etc, e dispensá-lo antes de Wlória chegar) W permaneceu parado na porta de casa, perplexo, de cueca, diante da visita inesperada. Que esboçou um tipo de reverência japonesa (juntar as palmas das mãos à altura do peito e inclinar levemente a cabeça) e escafedeu-se quase da mesma forma como tinha surgido.
W fechou a porta. Mas continuou perplexo, parado, a mão esquecida segurando a maçaneta. Afinal de contas, tal acontecimento contradizia todas as fórmulas ditas e repetidas em todas as consultas aos psicólogos, mães-de-santo, amigos conselheiros, manuais de auto-ajuda - de que só nos contos de fadas os candidatos a príncipes consortes batiam à porta dos necessitados. Não que o rapaz que tocou a campainha da casa de W fosse um príncipe. Pelo contrário, tinha cara normal: baixinho e careca.
Alem do mais, havia o conselho da carta do tarô, o nono arcano, Cavaleiro de copas, para espanar a poeira, colocar a bola pra frente, atirar-se na direção de caminhos que lhe conduzirão, W, à novidade, os encontros, as novas aventuras. A carta mandava W “imprimir movimento à existência”, tudo a ver. Teria W deixado obedecer o conselho da carta? Esfregou os olhos (não tinha sido mesmo sonho), balançou a cabeça pra espantar a dúvida e caiu na real.
Fez um longo xixi meditativo. Depois fez as abluções matinais e alimentou Billie, a cocker. Mas a incerteza por não ter feito a coisa certa bimbalhava, blimblava, badalava, não permitindo a W concentrar-se nos preparativos para o trabalho. Ainda era muito cedo (6h:15min). W foi comprar pão. Respirar o ar frio da madrugada faria bem. Aproveitaria para passear com Billie.
E não é que lá estava ele, o rapaz, de novo, com cara de desamparado, debaixo de uma marquise, no bloco seguinte ao da casa de W? Quando o rapaz avistou W, de longe, repetiu a reverência japonesa. W aproximou-se. Explicou: era muito cedo; ia comprar pão; se ele quisesse, tomavam café juntos. O rapaz aceitou o convite. Repetiu a história de não chegar na casa dele àquela hora.
W comprou 2 pães. Billie fez as necessidades. No caminho de volta o rapaz estava na porta da casa esperando W. W convidou-o a entrar. Só então sentiu o cheiro de álcool e de acetona do bafo dele. Bingo! a noitada dele tinha sido mesmo hardcore: uísque, provavelmente nacional e muuuito pó.
O rapaz entrou. Balbuciou explicações, negando o tom sedutor da fala inicial (o papo da companhia). Foi mais honesto:
"estava numa farra com a galera. Sou fraco pra essas coisas. Moro com a família. Não queria chegar em casa desse jeito."
W compreendeu. O rapaz não queria compartilhar carinho, fazer companhia para o carente. Queria guarita até passar a lombra. W foi maquiavélico. Lembrou do dito popular: "** de bêbado não tem dono". Seria só sexual o desejo oculto de W? Controlou a libido. Foi educado. Explicou:
“Não vai dar pra você ficar. Estou esperando a Wlória, a faxineira. Hoje será o primeiro dia dela aqui. Saio pra trabalhar daqui a pouco”.
Ofereceu café (W sempre acreditou na cafeína como santo remédio para a maioria dos males). O rapaz recusou. Disse que precisava ir embora. W perguntou-lhe o nome: O rapaz grunhiu um som incompreensível, terminado em -ão. Marcão? Betão? Zezão? Aarão? Jedeão? W nunca descobria.
A negativa do rapaz tranquilizou W. Ele tinha feito direitinho o dever de casa existencial – estar aberto às oportunidades que o acaso oferecia. Para sorte de W (a eminência da chegada de Wlória, não atrasar-se para o trabalho), o próprio acaso tinha se encarregado de encontrar saída digna para a história.
W ainda pensou naquelas fábulas religiosas e místicas – Sidarta, os santos ou o próprio Jesus disfarçados em mendigo, leproso ou peregrino bater na porta da casa do pecador pedindo abrigo, pão ou curativos. Duvidou: será que Buda, Jesus ou qualquer outro santo se prestaria ao papel de se fantasiar de drogado para testar a capacidade de aceitação de uma pobre biba carente às seis da manhã de um dia útil?
Apesar da lentidão W não tinha se saído mal. Se fosse Jesus disfarçado, ele devia ter anotado no caderninho que W havia revisto seus conceitos (ao reencontrar o rapaz depois de deixá-lo ir e convidá-lo para tomar café) e certamente perdoou as malévolas segundas intenções de W (a fruição erótica, a sacanagem pensada).
Se não fosse Jesus, Sidarta ou outro santo qualquer a atitude de W também poderia ser justificada no Juízo Final, no Nirvana, no Paraíso. W tinha dado oportunidade ao doidão para se retratar. Respeitou o brio de macho dele, fingindo nem ter ouvido a oferta inicial (quer companhia = quer transar?).
Ão desapareceu nos meandros da rua. voltará?
Às sete em ponto Wlória chegou. Tinha cara de pombagira. W mostrou a casa, apontou os serviços. Depois de ter passado por tudo aquilo, era fichinha deixar a casa por conta dela, uma desconhecida. Wlória ficou feliz com os R$ 60 por dia de faxina, uma vez por semana. Que os deuses protegessem e guardassem o lar de W.
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