sábado, 18 de setembro de 2010

Pra que se desgastar? Sente-se e aguarde o momento propício

Era uma vez uma galinha chamada A. Uma galinha não. Uma perua. Solteira. Uma perua com quase 50. Apesar de viver no mesmo terreiro do galo O, ela não chegou a conhecê-lo. No tempo de A, além de falar os bichos ainda sabiam ler e escrever. A chegou ao terreiro ainda criança, junto com um peruzote destinado a ser seu esposo e perpetuador da espécie. Porém o destino foi diverso. O gavião pegou o peruzote. O peruzote gostou. Foram viver juntos. Deixando a perua ainda adolescente a ver navios.

A não se desesperou. Não se tornou uma perua-galinha. Não deu pra todo mundo. Não virou lésbica, freira, carola ou evangélica feia. Canalizou a libido para o intelecto. Dedicou-se aos estudos. Aos 19, estava formada e concursada de ministério. Aos 30, abandonou o interminável mestrado. Aos 40, contratava frangos de frete duas vezes ao ano. Aos 50 aposentava-se, no cargo de secretária do chefe do departamento de pessoal.

Aconteceu na festinha de despedida. Enquanto o chefe discursava, antes dos salgadinhos, da salada de frutas, dos refrigerantes, da torta e das latas de cerveja guardadas na geladeira da copa, para serem liberadas após o encerramento do expediente.

Enquanto o chefe elogiava a irrepreensível carreira de A, A notou o estagiário. Novinho, gostosinho, penugem arrepiada, carinha de bebê. A sentiu vontade de pegar o gansinho no colo, tão fofinho ele era. Levar pra casa, colocar pra dormir, dar de mamar, fazer sopinha de noite, andar de roda gigante no parque. Como assim? Tinha despertado o tardio sentimento materno? Qual mãe que nada, era a fúria contida da libido que despertava e queria se libertar. Queria mesmo era afogar o gansinho em seu seio, sentir o gansinho inteiro dentro dela. A estranhou-se. Perdeu o fio da meada do discurso do chefe e só despertou do devaneio com os aplausos, os colegas em coro exigindo: dis-cur-soo! dis-cur-soo!

O discurso saiu. Duas lágrimas. Abraços, piadas, lista com os telefones e os e-mails dos colegas – não se esqueça da gente! Presente: semi-jóia, bijuteria sofisticada, ah, que lindo, era isso mesmo que eu queria. Não tirava os olhos do gansinho-estagiário.

Ou pegava o gansinho ou se jogava dali mesmo, do terceiro andar. 18 horas, cerveja liberada. A tomou o primeiro copo, o segundo. Nem beliscou o sanduíche de metro. No terceiro copo, alegrinha, passou a beber na própria lata, achava sexy o barulho de abrir – ptssssssh! – ainda imitou, seguido da gargalhada que os colegas nunca tinham ouvido.

 O estagiário cantarolou Miss Suéter em homenagem à aposentada. Os colegas fizeram coro: “na boca dois pivôs tão graciosos entre jóias naturais e olhos tais minúsculos aquários de peixinhos tropicais”. A só pensou em  avançar. O raciocínio da perua embotado pela quarta, quinta lata de cerveja, estômago vazio. O senso de ridículo tinha ido para o espaço, que se danassem, era seu último dia.

 Ofereceu o primeiro pedaço da Martha Rocha adivinhem a quem? Ao gansinho. Oh!, murmuraram os colegas, misto de reprovação e de quem queria ver o circo pegar fogo. A foi rápida: para saudar o sangue mais novo, o futuro da repartição. Todos aplaudiram. Depois A não desgrudou os olhos dele, o gansinho amado. Esperou o melhor momento e crau! cantou o gansinho. Ali mesmo, na frente de todo mundo, sentada na mesa do chefe, danem-se de novo.  Mas a cantada foi tão sutil, tão poética, tão literária que o gansinho não entendeu. Ou fingiu não entender. Aquela perua bêbada com idade para ser mãe, quiçá avó dele.

Nem precisa dizer que A foi pra casa sozinha, de táxi, bêbada como uma perua de véspera. Despiu-se e se deitou, sem tomar banho, nuinha, nem tirou os sapatos vermelhos. Sonhou com o gansinho.

No dia seguinte A nem se lembrou da dor de cabeça, o gosto de guarda-chuva, a sede eterna da ressaca. Foi direto para o tarô da internet. A leu o texto do 6 de espadas – afastar-se da rotina, permitir-se conhecer pessoas, opiniões e lugares novos, arejar a mente; e do 9 de paus – economizar as forças, evitar desgastes, esperar sentada a tormenta passar. Procurou o nome do gansinho na lista dos e-mails, dos telefones dos colegas que veio junto com o cartão do presente. Ligou. Caiu na caixa postal. Deixou recado: olá, querido, preciso falar com você, me liga quando puder. A esperou até de noite. O gansinho ligou? Nem eu. A angustiou-se. Na dúvida em ligar de novo. Então tormenta era aquilo? Não seria a própria tormenta que A tinha esperado por tanto tempo, e agora, que vinha, tinha que esperar passar? Depois de muitos anos, A lembrou-se do peruzote da adolescência. Aquele que tinha fugido com o gavião. A sentiu inveja, o peruzote que não esperou. Que se entregou de corpo e alma ao sentir na cara o primeiro pingo da tormenta. Então ligou de novo. O estagiário atendeu. Combinaram tomar sorvete no shopping. Depois de desligar, A viveu feliz para sempre.

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