Era uma vez uma galinha chamada A. Uma galinha não. Uma perua. Solteira. Uma perua com quase 50. Apesar de viver no mesmo terreiro do galo O, ela não chegou a conhecê-lo. No tempo de A, além de falar os bichos ainda sabiam ler e escrever. A chegou ao terreiro ainda criança, junto com um peruzote destinado a ser seu esposo e perpetuador da espécie. Porém o destino foi diverso. O gavião pegou o peruzote. O peruzote gostou. Foram viver juntos. Deixando a perua ainda adolescente a ver navios.
A não se desesperou. Não se tornou uma perua-galinha. Não deu pra todo mundo. Não virou lésbica, freira, carola ou evangélica feia. Canalizou a libido para o intelecto. Dedicou-se aos estudos. Aos 19, estava formada e concursada de ministério. Aos 30, abandonou o interminável mestrado. Aos 40, contratava frangos de frete duas vezes ao ano. Aos 50 aposentava-se, no cargo de secretária do chefe do departamento de pessoal.
Aconteceu na festinha de despedida. Enquanto o chefe discursava, antes dos salgadinhos, da salada de frutas, dos refrigerantes, da torta e das latas de cerveja guardadas na geladeira da copa, para serem liberadas após o encerramento do expediente.
Enquanto o chefe elogiava a irrepreensível carreira de A, A notou o estagiário. Novinho, gostosinho, penugem arrepiada, carinha de bebê. A sentiu vontade de pegar o gansinho no colo, tão fofinho ele era. Levar pra casa, colocar pra dormir, dar de mamar, fazer sopinha de noite, andar de roda gigante no parque. Como assim? Tinha despertado o tardio sentimento materno? Qual mãe que nada, era a fúria contida da libido que despertava e queria se libertar. Queria mesmo era afogar o gansinho em seu seio, sentir o gansinho inteiro dentro dela. A estranhou-se. Perdeu o fio da meada do discurso do chefe e só despertou do devaneio com os aplausos, os colegas em coro exigindo: dis-cur-soo! dis-cur-soo!
O discurso saiu. Duas lágrimas. Abraços, piadas, lista com os telefones e os e-mails dos colegas – não se esqueça da gente! Presente: semi-jóia, bijuteria sofisticada, ah, que lindo, era isso mesmo que eu queria. Não tirava os olhos do gansinho-estagiário.
Ou pegava o gansinho ou se jogava dali mesmo, do terceiro andar. 18 horas, cerveja liberada. A tomou o primeiro copo, o segundo. Nem beliscou o sanduíche de metro. No terceiro copo, alegrinha, passou a beber na própria lata, achava sexy o barulho de abrir – ptssssssh! – ainda imitou, seguido da gargalhada que os colegas nunca tinham ouvido.
O estagiário cantarolou Miss Suéter em homenagem à aposentada. Os colegas fizeram coro: “na boca dois pivôs tão graciosos entre jóias naturais e olhos tais minúsculos aquários de peixinhos tropicais”. A só pensou em avançar. O raciocínio da perua embotado pela quarta, quinta lata de cerveja, estômago vazio. O senso de ridículo tinha ido para o espaço, que se danassem, era seu último dia.
Ofereceu o primeiro pedaço da Martha Rocha adivinhem a quem? Ao gansinho. Oh!, murmuraram os colegas, misto de reprovação e de quem queria ver o circo pegar fogo. A foi rápida: para saudar o sangue mais novo, o futuro da repartição. Todos aplaudiram. Depois A não desgrudou os olhos dele, o gansinho amado. Esperou o melhor momento e crau! cantou o gansinho. Ali mesmo, na frente de todo mundo, sentada na mesa do chefe, danem-se de novo. Mas a cantada foi tão sutil, tão poética, tão literária que o gansinho não entendeu. Ou fingiu não entender. Aquela perua bêbada com idade para ser mãe, quiçá avó dele.
Nem precisa dizer que A foi pra casa sozinha, de táxi, bêbada como uma perua de véspera. Despiu-se e se deitou, sem tomar banho, nuinha, nem tirou os sapatos vermelhos. Sonhou com o gansinho.
No dia seguinte A nem se lembrou da dor de cabeça, o gosto de guarda-chuva, a sede eterna da ressaca. Foi direto para o tarô da internet. A leu o texto do 6 de espadas – afastar-se da rotina, permitir-se conhecer pessoas, opiniões e lugares novos, arejar a mente; e do 9 de paus – economizar as forças, evitar desgastes, esperar sentada a tormenta passar. Procurou o nome do gansinho na lista dos e-mails, dos telefones dos colegas que veio junto com o cartão do presente. Ligou. Caiu na caixa postal. Deixou recado: olá, querido, preciso falar com você, me liga quando puder. A esperou até de noite. O gansinho ligou? Nem eu. A angustiou-se. Na dúvida em ligar de novo. Então tormenta era aquilo? Não seria a própria tormenta que A tinha esperado por tanto tempo, e agora, que vinha, tinha que esperar passar? Depois de muitos anos, A lembrou-se do peruzote da adolescência. Aquele que tinha fugido com o gavião. A sentiu inveja, o peruzote que não esperou. Que se entregou de corpo e alma ao sentir na cara o primeiro pingo da tormenta. Então ligou de novo. O estagiário atendeu. Combinaram tomar sorvete no shopping. Depois de desligar, A viveu feliz para sempre.
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