1. Em Paraty eu comecei a escrever um conto de casamento. Narrado por um adolescente tetraplégico, que observa, da janela do apartamento em frente, os movimentos de um casal, desde o momento em que se mudam até a hora em que a polícia leva um dos parceiros, acusado anonimamente (pelo adolescente, óbvio), de assassinato do outro. O roteiro é banal, meloso, hitchcock fraco, pulp-fiction. Pode até parecer plágio a Santiago (o adolescente narrador), dane-se, a história é boa, os personagens. Começa com o mar de rosas e termina com a enxurrada de lama, o destino fatal da maioria dos casamentos.
2. Pelo menos uma vez por semana ouço reclamações matrimoniais de A2: incompatibilidade de interesses, rancores remoídos, insatisfações mútuas, choque de autoridade. A2 gosta de lasanha, a companheira de salada; A2 adora viajar por lugares desconhecidos, a companheira de cozinhar para os amigos. A2 só fala de corrida de carros, a companheira ama futebol; A2 gosta de mandar, a companheira também, esse tipo de bobagem. Antes eu opinava, conselhos de auto-ajuda: tem que ceder, tem que manter o equilíbrio, tem que dialogar, tem que parar de beber, tem que estar aberto para as proposições do outro, por mais absurdas que pareçam. Outro dia encontrei o casal em uma pizzaria. Cara feliz, família feliz, a própria foto de cartão de dia-dos-namorados. Não cabia nela o discurso choroso semanal de A2.
3. A carta tirada hoje foi a rainha de copas, o quadragésimo nono arcano. Conselho: manter-se fiel aos próprios ideais. O texto é confuso. Primeiro fala que eu não devo me contentar com pouco. Coincidência, M ontem falou que, caso publique a nova produção, ao contrário de mim, não se contentará com a produção editorial local – buscará as grandes editoras. Depois o oráculo me manda avaliar e cortar pela raiz as relações, as pessoas e as situações que não servem mais, sobretudo – e mais uma vez óbvio – as que pararam de render dividendos. Em seguida previne que eu tenho que me preparar para situações adversas, “eventuais sofrimentos”, situações difíceis. Por fim, manda aconselhar-me com uma mulher mais velha, que tenha vivido situações semelhantes. Mesmo sem saber, eu tenho feito o que o tarô sugere: conversar com mulher mais velha (vide o item 4 a seguir e o post anterior); deletar relações vampiras (M pode comprovar pelas nossas conversas sobre a possibilidade da “desapresentação”). Só não me sinto preparado para as adversidades, os possíveis sofrimentos do porvir, a gente nunca está. Tomar banho de pétalas de rosa, espargir sal grosso nos cantos, acender defumador, tomar um ebó pode não resolver, mas ameniza. E esperar, o mar de rosas do item 1 tem também as suas ressacas, os seus estuários de lama, as suas praias poluídas, as suas tartarugas geneticamente modificadas.
4. Ia escrever sobre as desventuras de S. Uma das mulheres mais velhas, uma das rainhas de copas com quem preciso conversar. S. está sempre de astral elevado. Há um tempo atrás me convenceu a fazermos juntos uma lipo-light, extirpar os pneuzinhos, a pança. Depois do calvário pós-operatório – cintas, gaze, esparadrapo microporo, carboxiterapia (agulhinhas injetoras de gás carbônico debaixo da pele, doloridíssimas!), confesso, foram os dias mais felizes da minha vida. A cinturinha de pilão, o abdome definido, a valorização do tórax, ah, a vã vaidade da matéria. Voltando a S.: S. está sempre comprando algo, investindo: sala comercial, kit, carro novo. Por isso, além de amiga, virou consultora imobiliária. Apesar de eu nunca ter dinheiro pra concretizar os negócios da china que S. sugere. Vou parar de escrever este post, que já está comprido demais. Vou conversar com S. E cumprir a determinação do tarô de hoje.
Nota de rodapé sobre "O Instinto de Desapresentação": “Quantas vezes desejei que houvesse, assim como somos apresentados a pessoas, o instituto da desapresentação. Um chegaria para o outro e diria: De hoje em diante estaremos poupados sequer de acenar a cabeça em caso de encontro acidental (redundante, talvez, mas necessário reafirmar). Não nos conhecemos mais, e assim nos comportaremos, como quaisquer na multidão. Com um adicional: ninguém nos reapresentará, pois não somos desconhecidos comuns, mas do tipo que deseja permanecer desconhecido.” - De Francisco Daudt da Veiga, “O Amor Companheiro (enviado por M).
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