Mãe é muito mais mãe no sertão.
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O texto a seguir era uma homenagem ao dia das mães. Servia para mostrar que na ética rude dos jagunços, a mãe de cada um ocupa o lugar sagrado, santificado. Falar mal da mãe e ser chamado de ladrão são as piores ofensas, e dessas não há saída nem perdão. A obrigação do ofendido era lutar até vingar a ofensa com a morte do ofensor.
Abandonei pelo meio e a ideia se perdeu. Perdeu-se também o sentido da tentativa de recuperá-la. Porém, para não desperdiçar o trabalho, vale a pena ler nem que seja pela beleza dos trechos transcritos.
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O julgamento de Zé Bebelo é um trecho é seminal do romance. A partir dele Riobaldo assume para si mesmo o amor físico e carnal por Diadorim, e a malignidade do Hermógenes revela-se quando este, juntamente com o Ricardão, assassinam Joca Ramiro à traição.
É um julgamento sem lei. Ou melhor, na lei inexorável do sertão.
Riobaldo
narra de forma a confundir o interlocutor, disfarçando o limite entre o
trágico e o cômico, o puro lorotal de Zé Bebelo. O trecho me faz lembrar o chá da lebre de Março, em Alice no país das maravilhas:
O julgamento? Digo: aquilo foi coisa séria de importante. [...] "O que
nem foi julgamento legítimo nenhum: só uma extração estúrdia e
destrambelhada, doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão..." -
o senhor dirá. [...] Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às
vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo!
[...]
"Homem engraçado, homem dôido!" - Diadorim ainda achava.
[...]
Tinha sido aquilo: Joca Ramiro chegando, real, em seu alto cavalo branco, e defrontando Zé Bebelo à pé, rasgado e sujo, sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, e seguro por dois homens. Mas, mesmo assim, Zé Bebelo empinou o queixo, inteirou de olhar aquele, cima a baixo. Daí disse"
- "Dê respeito, chefe. O senhor diante de mim, o grande cavaleiro, mas eu sou seu igual. Dê respeito!"
- "O senhor se acalme. O senhor está preso..." - Joca Ramiro respondeu, sem levantar a voz.
Mas, com surpresa de todos, Zé Bebelo também mudou de toada, para debicar, com um engraçado atrevimento:
- "Preso? Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas, então, o que o senhor vê não é o que o senhor vê, compadre: é o que o senhor vai ver..."
[...]
Assim isso. Tolêimas todas? Não por não.
Assim por diante.
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Joca Ramiro reúne os maiorais Sô Candelário, Hermógenes, Ricardão, Titão Passos e João Goanhá numa confa. Trazem Zé Bebelo, que se senta no tamborete de Joca Ramiro, colocado no centro do círculo formado pela jagunçada. Sugere, com a maior cara de pau, que os outros sentem-se no chão. Os jagunços se eriçam com tamanha ousadia. Joca Ramiro aceita o displante. Só então Zé Bebelo abandona o banquinho, sentando-se ao mesmo nível dos outros.
Então começam a falar os maiorais, principiado pelas acusações e sentença de morte cruel, pelo Hermógenes:
- "Acusação, que a gente acha, é que se devia de amarrar esse cujo, feito porco. O sangrante... Ou então botar atravessado no chão, a gente todos passava a cavalo por riba dele - a ver se a vida sobrava, para não sobrar!"
Depois da fala do Hermógenes Zé Bebelo pira de vez. Ironiza, achincalha a fala com gestos e interjeições debochadas. Encara e enfrenta o olhar do Hermógenes. Faz a raiva do Hermógenes ferver. Ao ponto dele exigir, numa voz rachada em duas, voz torta e entortada (a voz do demo?):
- "Tibes, trapo, o desgraçado desse canalha que me agravou! Me agravou, mesmo estando assim vencido nosso e preso. Meu direito é acabar com ele, Chefe!"
Os jagunços se eriçam. Resmungam em aprovação. Os do bando do Hermógenes incitam a vingança em voz alta. Mas Joca Ramiro era mesmo um líder, um tutùmumbuca, grande maioral. Contrapôs:
- "Mas ele não falou o nome-da-mãe, amigo..."
E era verdade. Todo o mundo concordou. [...] Só para o nome-da-mãe ou de "ladrão" era que não havia remédio, por ser a ofensa grave.
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Fato inquestionável. O Hermógenes foi obrigado a engolir a raiva. E provavelmente amadurecer a ideia da traição e assassinato de Joca Ramiro, dando então início à verdadeira saga do romance.
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