terça-feira, 15 de novembro de 2011

bela adormecida

Meu nome é Aurora. Odeio. Nome de velha. Ok. Tecnicamente sou uma centenária.

Contaram-me. O resto são reminiscências. E recortes dos jornais da época. Afinal, dormi 100 anos. Começarei do princípio. O batizado.

Mamãe tinha tirado os 7 pratos de ouro, as 7 colheres, os 7 garfos, as 7 facas e os 7 talheres de sobremesa de prata, as 7 taças de cristal, os 7 guardanapos de linho, as 7 sopeiras de porcelana chinesa da cristaleira.

Para servir as 7 tias-madrinhas. Por ato falho mamãe começou a festa antes da tia-madrinha Setênia chegar. Solteirona. Problemática. Turrona. Ressentida. Ok. Se não fosse ela, não haveria história.

Ah, já me esquecia: as 7 tias-madrinhas eram fadas. Os presentes eram virtudes: bondade, beleza, inteligência, temperança, diligência, riqueza e humildade.

Tia Setênia chegou atrasada. Armando o maior barraco com o manobrista, o segurança, a recepcionista. O chefe do cerimonial interveio. Imaginem quando ela viu a festa acontecendo sem ela?

Ficou furiosa. Fora de si. Xingou. As piores imprecações. E a praga: eu morreria aos 15 anos, picada por agulha de máquina de costura.

Máquina de costura? Já naquela época era tão antiquado que ninguém se preocupou. Aqueles risonhos disfarçados, o promoter anunciando a próxima atração, o brinde. A festa seguiu como se quase nada tivesse acontecido.

As 6 tias-madrinhas boazinhas deram os presentes diante dos convidados. Em seguida reuniram-se com mamãe e papai em reservado. Impossível anular a maldição. Só amenizar. Tia Setênia era mesmo do babado.

Sono ao invés da morte. Dormir até ser despertada pelo verdadeiro amor. Na semana seguinte, 50 anos depois ou, sabe-se lá quando… Ou seja: parecido com morrer.

Por precaução (o seguro morreu de velho) papai fechou as fábricas, proibiu a importação e determinou a destruição de todas as máquinas de costura do reino.

Eu crescia cada vez mais bondosa, linda, inteligente, equilibrada, diligente, rica, humilde, modesta. E ignorante da minha sina.

Foi na semana da festa de 15 anos. Chovia horrores. Os amiguinhos (filhos e filhas dos criados) ajudavam nos afazeres dos pais. Mamãe não desgrudava do celular. Nada a fazer.

Eu nunca antes tinha notado aquela escadaria. Em espiral. Com cheiro de mofo e xixi de gato. Do alto vinha um barulho indefinível. Tipo um besouro. Ou videogame. Subi. No fim da escada havia uma porta. Entrei.

Estava lá uma velhota. Debruçada em um objeto esquisito. De onde saía o barulhinho. Tecidos por todos os lados. Curiosa, fui com a mão – o que é isso? – apontando para a agulha. A velhota não teve tempo de explicar. A agulha me picou (ou eu me piquei na agulha?).

Depois eu não me lembro. Só o lido nos recortes de jornal. Caí desmaiada. Provavelmente a velhota gargalhou, metamorfoseou-se em morcego ou mariposa e esvoaçou pela janela.

Legal esse trecho: “Adormeceram no trono o rei e a rainha, recém-chegados da partida de caça. Adormeceram os cavalos na estrebaria, as galinhas no galinheiro, os cães no pátio e os pássaros no telhado. Adormeceu o cozinheiro que assava a carne e o servente que lavava as louças; adormeceram os cavaleiros com as espadas na mão e as damas que enrolavam seus cabelos. Também o fogo que ardia nos braseiros e nas lareiras parou de queimar, parou também o vento que assobiava na floresta. Nada e ninguém se mexia no palácio, mergulhado em profundo silêncio”.

Cresceu um matagal em volta do castelo. A notícia se espalhou. Virei conto de fadas. Eu e o resto da galera despertaríamos assim que me beijassem um beijo de amor verdadeiro.

Dezenas de aventureiros tentaram desbravar o matagal intransponível e despertar a bela adormecida. Desistiam ou morriam. Passaram-se 100 anos.

Foi um garoto. 17 anos. Bonito como um modelo. Filipe. Soube de mim em um texto da apostila do pré-vestibular. Bobinho, Cheio de fantasias. Apaixonou-se. Para minha sorte.

Cortou o mato. Entrou no castelo. Tudo e todos congelados. Afazeres interrompidos pelo sono. Subiu a torre. Me achou afundada nos tecidos. Disse que eu era idêntica à ilustração da apostila. Me beijou.

Acordei. O garoto beijava gostoso. Meu hálito devia estar um horror. Com licença, querido, vou escovar os dentes.

Veio com a conversa de casar felizes para sempre.

Casar? Depois de dormir 100 anos? Eu queria aproveitar a vida. Me atualizar. Sair. Fazer amigos. Balada. Festinha. Acampar. Fazer teatro. Intercâmbio. Etc.

A paixão dele passou rápido. Agora, namora meu pajem. Uma graça os dois juntos. Apesar da diferença de idade ficamos amigos.

Ele me ensina como me comportar nos tempos atuais. Tenho muito o que aprender. Ano que vem visitarei as primas em Barcelona. Papai quer que eu estude direito. Mamãe, me levar para fazer compras em Miami. As tias telefonam de vez em quando.

Papai e mamãe ficam horrorizados: eu morro de vontade de conhecer tia Setênia. Eu me identifico com ela. Esquisitona. Temperamental. Diferente. Voluntariosa. Tenho a impressão que a gente vai se entender super-bem.

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