Outro dia convidei para almoçar uma amiga que há muitos anos não via. Chamei outros amigos da época. Tentei caprichar no almoço. Pão de centeio e de farinha de arroz para os celíacos, pasta de grão-de-bico e berinjela de entrada. Salada bonita e saudável, com mussarela de búfala ou tofu grelhado para os intolerantes à lactose. Arroz milagrosamente soltinho. Arranjo de rosas-chá, margaridas, papos-de-anjo e lírios amarelos.
Fruteira no centro da mesa ao ar livre, sobre a toalha rendada, quase como uma natureza-morta abstracionista (existe?), quase Kandinski quase Mondrian. Suco de uvas verdes, Incenso de alecrim - tudo perfeito. Exceto o
prato principal.
Era uma receita nova. Os ingredientes eram de primeira. Bacalhau do Porto com muitos centímetros de espessura. Coloquei para dessalgar desde a manhã do dia anterior, trocando a água gelada a cada 4 horas. Fervi as postas no leite, depositei-as com a maior delicadeza sobre o leito de batatas cozidas e amassadas à mão, cobri com a camada de maionese e queijo parmesão, calculei o tempo e temperatura exatos para gratinar - e por fim espalhei naquela casquinha dourada ovos cozidos esfarelados e azeitonas pretas do tamanho de ovos de codorna.
Foi unânime o regozijo ao colocar o prato na mesa. A aparência era de dar água na boca. Mas na hora de comer, todos em silêncio. Nenhum elogio, nem por educação. O que o prato tinha de lindo, tinha de salgado. Muito salgado. Salgado mesmo. Intragável. De queimar a língua e os lábios.
Os convivas resolveram da melhor forma. Se empanturraram de arroz com azeite ou sanduíches feitos com os pães sem glúten recheados com as saladas e muito suco de uva.
O bacalhau especial salgadérrimo quase intocado rendeu risotos, escondidinhos, sopas e otras cositas más durante a semana seguinte ao evento.
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Mais recentemente houve outro evento especial, também em homenagem à amizades antigas. Devido a restrições orçamentárias e à falta de tempo, a receita foi elaborada com o que havia na geladeira e despensa: Azeite, 2 bandejas de peixe desfiado tipo bacalhau - aqueles vendidos a granel no supermercado por 1/5 do preço do verdadeiro. Só precisei comprar cebolas, brócolis congelado, batatas e pimentões coloridos - vermelho, verde, amarelo - um de cada.
Era o infalível bacalhau à portuguesa, tipo cozidão, tudo misturado, em camadas, receita que faço há anos, e nunca deu errado:
Untar a forma refratária com azeite; espalhar uma camada de batatas pré-cozidas, fatiadas mais ou menos com a espessura de 1cm; regar com azeite; espalhar uma camada de cebolas cortadas em pétalas; mais azeite; espalhar o bacalhau desfiado e dessalgado em pedaços não muito pequenos; mais uma regada de azeite; cobrir com outra camada de batatas; levar ao forno pré-aquecido a 250 graus por 30 a 40 minutos; depois de assado, enfeitar com tiras de pimentão colorido e flores de brócolis previamente refogadas no azeite, para amolecer; e espalhar as azeitonas.
Para evitar a problemática do prato anterior, eu coloquei de molho com mais um dia de antecedência. Foi o erro. Os tais peixinhos tipo bacalhau (acho que são feitos de filé de merluza) são delgados e não absorvem tão profundamente o sal quanto o verdadeiro e espesso bacalhau português-norueguês. O sal saiu todo. Ou seja, mais uma vez o prato ficou lindo, mas completamente insosso.
Pelo menos era mais fácil remediar. Nunca o saleiro foi tão utilizado.
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Uma das convidadas dos dois eventos era uma amiga que, além de gueixa é artista, filósofa, pitonisa e cozinheira de mão cheia. Ela tem um ditado mais ou menos assim: você pode saber as técnicas mais maravilhosas, os equipamentos mais sofisticados, cozinhar com os melhores ingredientes mas se não estiver inspirado não adianta por que algo vai dar errado.
Essa inspiração, segundo ela, tem a ver com amor e desprendimento. Você tem que vivenciar cada momento, desde os preparativos - as escolha dos ingredientes, a ida ao supermercado, o preparo, a arrumação da casa, a disposição dos pratos e dos talheres na mesa - aí tudo acontece, tudo flui, a comida ficará sempre deliciosa.
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E daí? Qual a moral, a conclusão da postagem?
Confesso, não sei bem. Realizar os dois eventos foi um esforço grande de sair da casca (ou, melhor, de trazer companhia para a casca, uma vez que está difícil sair dela), onde tenho permanecido mais tempo que o recomendável. Apesar do orgulho ferido do cozinheiro, no fim das contas pouco ou quase nada importou se a comida era boa ou ruim, chique ou trivial, salgada ou insossa. O que valeu - e vale sempre - é reunir as pessoas. Falar bobagens, rir, relaxar, deixar de lado as formalidades. Compartilhar com elas momentos de felicidade que, mesmo ínfimos, são únicos e perdurarão muito tempo, quem sabe até o final das nossas existências.
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Isso me faz lembrar o conto de Clarice sobre um almoço de sábado.
Um comentário:
nenhum tempero é melhor do que o aconchego de estarmos juntos. tudo fica sempre uma delícia, pode estar certo disso. e este não é um elogio educado, você bem sabe.
;)
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