(Na primeira parte foram apresentados os personagens e introduzida a cena, ocorrida em um edifício em bairro nobre de uma cidade litorânea. Na segunda parte descreveu-se uma festa na cobertura desse edifício. A seguir a narrativa desenrola-se até o desfecho. Leia as partes iniciais clicando nos links em vermelho acima).
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Era o fogo cruzado. Tentarei descrever de forma menos chata possível.
Primeiro foram as cantadas da condessa de Z para com a minha pessoa. (Na verdade a condessa de Z nem queria nada concreto. Era mais para impressionar a dona da casa). Eu fazia questão de negar e recusar categoricamente, em alto e bom tom (querida, eu adooooro você, mas só como amiga).
Frustrada, a condessa passou a atacar Marilu. com piadas cáusticas sobre a falta de grana, o saudosismo das pompas, a ousadia exagerada no decote e nos ajustes da roupa, dúvidas sobre o comparecimento nas obrigações conjugais de Otavinho - enfim - sobre a decadência da elite da cidade de R.
Marilu perdeu as estribeiras. Com o dedo encostado no nariz da condessa de Z, intimou-a a mudar de conversa. Estava exausta e não aturava mais aquela horda de bêbados, desde o começo da tarde até àquela hora da noite. Além disso, que a condessa de Z pagasse os 50 reais devidos desde tempos remotos ou se retirasse dali imediatamente.
Inconsolada por ninguém tomar-lhe as dores e injustiçada pela cobrança pública da dívida, a condessa de Z telefonou para a condessinha. Mal passados 15 minutos chega a condessinha para defender a mãe. Veio acompanhada de um grupo de funkeiros e uma caixa de isopor repleta de cervejas geladérrimas.
A outra frente de combate era comandada por Carmencita. O alvo éramos o amante Claudinho e eu, a celebridade do momento.
O ódio de Carmencita embananou-lhe a razão. Explodiu de ciúmes. Sem se preocupar se o barraco revelava a todos (principalmente a Benzinho) seus amores extraconjugais com Claudinho. Metralhou o bofe de impropérios - que ela nunca tinha imaginado aquilo (impressionante ela não saber que Claudinho era gay); que ele devia dar-se ao respeito, fazer aquelas safadezas (segurar a minha mão?) na frente de gente da laia dele, que ela não era qualquer uma, para ser desfrutada, chupada como uma laranja, até o bagaço e depois jogada fora - etc.
Os olhos do marido-síndico Benzinho arregalavam-se à medida em que compreendia a fala da esposa. Ah, Carmencita... É efeito do álcool... seu fígado é fraquinho, bastam 2 copos pra você perder a noção (Carmencita tinha bebido pelo menos 2 dúzias de copos).
Paulo César era o único com o juízo no lugar. Finérrimo, contemporizava. Mudava de assunto. Pena que de modo cada vez mais desastrado. Por exemplo: achava um absurdo todas aquelas obras de arte importantíssimas para a história da arte brasileira escondidas do grande público, dependuradas nas paredes da cobertura. Ou: que poderia colaborar com Otavinho em trechos árduos da tradução de Hannah Arendt. Ou ainda: Que concordava com a taxa extra astronômica, pois somente assim o condomínio poderia fazer as reformas do salão de jogos.
Piorou quando (equivocado e desnecessário) entrou no tema: o amor que não ousa dizer seu nome. Que concordava com os direitos iguais de pessoas do mesmo sexo, mas casamento na igreja e no papel era demais. Que ele mesmo, nos bons tempos (olhando para Claudinho e eu), gostava de escandalizar a sociedade, mas agora o certo era esse tipo de coisas ficar entre quatro paredes, no recôndito do lar.
Era demais. Ao invés de seguir Claudinho com a desculpa de ver uma Tarsila na sala, eu soltei os bichos para cima de Paulo César. Aquele discurso era incongruente. Ainda mais saído da boca de um intelectual de esquerda. Ele era preconceituoso, burguês elitista decadente. Na verdade ele estava roendo-se de ciúmes. Que o refrão feito em parceria com Chico Buarque era sofrível e que a música era uma das piores do repertório dele. Etc.
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Quando tudo parecia caminhar para o caos, os amigos da condessinha ligaram Mc Daleste na maior altura: Mais amor, menos recalque / Sai do pé morre pra lá.
Foi a salvação. A música (deixemos de lado as considerações estéticas e sociológicas) era contagiante.
A primeira a entrar na roda foi Marilu. Sabia os passos mais complicados, até aquele de descer rebolando até quase encostar a bundinha no chão. Aos 70 anos!
Claudinho me puxou. Mesmo sem o mínimo jeito eu me deixei levar. Em seguida Benzinho conseguiu arrastar Carmencita para a pista improvisada na varanda.
A condessa de Z, amuada e com o orgulho ferido, sentada sozinha, depois de colocar e tirar a bolsa e o casaco para ir embora umas 3 vezes, cedeu aos encantos do ritmo do morro. Ela, Carmencita e Marilu disputavam com as funkeiras amigas da condessinha requebros e remelexos mais provocantes.
Só Otavinho não se deixou arrebatar. Roncava alto, alheio ao barulho, certamente misturando nos sonhos de Rivotril o gosto duvidoso das letras do funk e os trechos dificílimos e intraduzíveis da filósofa alemã.
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E a balada rolou na cobertura mais chique da cidade de R até o dia raiar.
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