quinta-feira, 19 de setembro de 2013

piano


Dona Cilene era professora de piano. Clara, óculos grossos, cabelo liso e farto preso em um coque. Esposa do pastor Otávio.

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Os livros de exercício eram grandes (do tamanho A4) e eram chamados métodos. Havia também as peças musicais com 2 ou 3 páginas impressas em tinta azul-escuro. Mais os cadernos pautados encapados, os gatinhos, cães, pássaros e flores que decalcávamos no topo de cada exercício do método ou ao lado dos títulos das peças. Tudo, inclusive os lápis-de-cor e a pasta de elástico Dona Cilene encomendava de São Paulo.

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Depois das aulas eu estudava horas seguidas em um piano de brinquedo que pertencia à Fabiane, a filha da vizinha Dona Marli.

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Aprender piano era uma tarefa árdua. Dona Cilene ensinava também notação musical, solfejo e história da música.

Cada nota tinha uma cor, cada linha da pauta era da cor da nota correspondente. O dó era vermelho; o ré, verde; o mi-amarelo; fá, roxo; sol, laranja; lá, azul-claro; si, marrom.

Breves e semibreves (as notas vazadas) eram preenchidas. Mínimas, semínimas, colcheias, semicolcheias, fusas e semifusas (as notas pretas com hastes) recebiam, cada uma, na parte inferior, um ponto na cor devida. Grande parte do horário da aula era gasto em colorir as notas e as pautas musicais.

Solfejo era outra dificuldade. Especificamente para mim, canhoto e desprovido de coordenação motora. Enquanto cantávamos no tom da nota, marcávamos os ritmos - binário (1-2), terciário (1-2-3) e quaternário (1-2-3-4) - com movimentos da mão/braço direitos cruzando o ar nas 4 direções.

História da música era a parte mais chata. Bach, Berlioz, Brahms, Chopin eram nomes impronunciáveis de seres além da nossa compreensão. Percebendo isso, Dona Cilene falava deles por alto. Para nosso deleite, a certa altura da aula ela desistia do bla-bla-blá. Sentava-se ao piano e exemplificava, tocando trechos das obras de um ou outro.

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Toquei pela primeira vez em público a peça musical Minha jangada de vela/que o vento pode levar/de dia vento de terra/de noite vento de mar. Só isso mesmo. Foi em um culto especial da igreja do Pastor Otávio. Usei o terno xadrês marrom e uma gravata-borboleta, roupa usada no casamento da Tia Madalena.

Eu, ainda católico (aos 9 anos!), estava terrificado com o pecado de participar do culto da igreja concorrente. E morto de sono. Aquilo era aborrecidíssimo. Tão diferente da missa. Aleluias! e exclamações extáticas vindas da plateia interrompiam o tempo todo a interminável pregação do pastor Otávio.

A apresentação era depois do culto. Nem é preciso dizer que eu errei duas vezes. Travei. Quis desistir. Mas o olhar fuzilante de Dona Cilene por trás da cortina do templo me obrigou a continuar. Terminei debulhado em lágrimas.

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A segunda e última apresentação foi na televisão. No programa do Titio Darlan, na TV Brasília. Titio Darlan comandava um programa infantil, ao vivo. Fomos nós, os melhores alunos da escola da Dona Cilene, do Gama. Eu tocaria a dificílima A vendedora de flores. Tinha ensaiado dia e noite (no pianinho da Fabiane ou em um teclado de papel, em tamanho natural, que acompanhava um dos métodos).

Quando chegou a minha vez, mal comecei os acordes, Titio Darlan interrompeu o programa para os comerciais.

Foi a primeira pá de cal jogada sobre as minhas pretensões artístico-musicais.

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A última pá foi logo depois. Com a transferência do Pastor Otávio (que também era missionário) para outra cidade. Foram-se Dona Cilene, os 2 pianos e as cançonetas marteladas nas tardes de canícula. Nunca mais aulas de piano. Nunca mais solfejar, desenhar claves de sol, colorir métodos. Nunca mais os exercícios dos deveres-de-casa.

Para alívio de Dona Marli, ouvidos finalmente libertados dos meus estudos no pianinho estridente da Fabiane.

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