foto obtida em: http://paixaocapixaba.com.br |
Itaúnas é um povoado, originalmente de pescadores, no norte do Espírito Santo, quase divisa com a Bahia. Pertence ao município de Conceição da Barra. A vila antiga erguia-se entre as dunas e o rio. Foi coberta pela areia nos anos 1960/70. Construíram outra, mais afastada do mar, na outra margem do rio, próxima aos manguezais.
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Era uma epopeia chegar a Itaúnas. 2 dias dentro de ônibus interestaduais (Brasília/BH/Vitória) ou trem (BH/Vitória) e mais a metade de outro dia no pinga-pinga (Vitória/Conceição da Barra ou São Mateus). Dependendo dos atrasos, arriscava-se ainda passar uma noite na rodoviária de Conceição, até pegar carona ou a primeira jardineira às 6:30 da manhã.
A estrada entre Conceição e a vila era de areia e terra batida. Atravessava uns 30 quilômetros de eucaliptais que se estendiam por todo o Espírito Santo até o sul da Bahia. Tudo propriedade da Aracruz e/ou poderosas multinacionais produtoras de celulose.
Quando chovia a estrada era intransponível. Naquela época os carros 4x4 eram raros. Por isso, ficava-se isolado. O único a fazer era esperar a estiada. Podia demorar dias.
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Mas valia a pena. O lugar era paradisíaco. A água do rio era escura e transparente, da cor de caramelo. As margens e o fundo eram de areia. Atravessava-se o rio por uma ponte estreita de madeira ou a nado. Depois, mais ou menos menos 1 km de caminhada pelas dunas (brancas ou às vezes amareladas) até chegar à praia de areia grossa, escura, que se estendia por 18 (ou 12?) quilômetros, ondas fortes. Na volta, ao final da tarde, o banho de água doce na lagoa entre as dunas e o rio.
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A praia era local de desova de tartarugas. Ao caminhar pelas dunas podia-se encontrar cacos de cerâmica, ossos, fragmentos de roupas, botões - provavelmente da vila soterrada ou de civilizações precolombianas.
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Além de nós, mochileiros riporongas, com o passar dos anos vieram hordas de turistas convencionais, chamados pelos nativos de paulistas.
Junto com eles a degradação acelerada do ecossistema e dos sítios arqueológicos, a poluição (da última vez que estive lá a lagoa estava imprópria para banho devido à concentração elevada de coliformes fecais), a especulação imobiliária, a proliferação de pousadas, campings e casas chiques, as diferenças sociais, e a exclusão gradativa (alcoolismo e crack) dos nativos economicamente inviáveis, enfim, a violência.
Além de um forró universitário misturado com dance e axé music ensurdecedores que varava as noites de quinta-feira a domingo.
Os inevitáveis bens e males do progresso.
(Tive notícias que o forró virou tradição e as coisas melhoraram depois da criação do Parque Estadual e de associações de moradores).
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Certa vez fomos ver a lua cheia nascer nas dunas. Na volta sentimos o chão tremer. O tremor aumentava, e com ele o barulho crescente de um tropel. Mal tivemos tempo de nos proteger entre as moitas da restinga. Era um estouro de boiada. No meio da areia, saído do nada. Surreal, fantasmagórico, assustador. A boiada desapareceu da mesma forma: no nada.
No dia seguinte nenhum vestígio - rastros, bosta, galhos quebrados. Quando comentávamos, os nativos misteriosamente disfarçavam e mudavam de assunto. Nunca descobrimos se fora real ou alucinação coletiva.
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De outra vez estive lá (ainda nos anos 1980), no período dos festejos natalinos. Presenciei (e participei de) uma das mais lindas manifestações culturais brasileiras - o ticumbi, no dia-de-reis.
Começou bem cedo. Na igreja, pequena, caiada, plantada em um descampado no centro da vila, que servia de praça. Não havia padre. A missa era celebrada pelos membros mais antigos da comunidade. O sol raiava e a luz entrava pelas janelas abertas, misturando-se com a luz das velas.
As mulheres cobriam as cabeças com lenços desbotados, uma ou outra com mantilha. Os homens estavam descalços, camisas com mangas arregaçadas, olhos baixos, compenetrados. Homens e mulheres cantavam forte, com fé, hinos religiosos muito antigos, esquecidos.
Depois saíram em procissão, levando um menino Jesus esculpido em madeira, tosco, depositado com toda delicadeza em uma manjedoura acolchoada com tiras de papel crepom verde e amarelo. A procissão levava o menino Jesus de casa em casa, na rua principal. Onde se rezava o terço, tomava-se água, um gole de cachaça, às vezes um copo de cerveja, e cantava-se.
Lá pelas 10 horas os tambores e a cantoria do ticumbi irromperam no fim da vila. Os homens vinham vestidos com roupas coloridas de chita, chapéus com fitas. As mulheres vestiam de branco, turbantes ou lenços nos cabelos e/ou saias coloridas. Cantavam e dançavam, menos sacras, mais dionisíacas. Uma delas levava o estandarte bordado não me lembro mais com qual santo. E o batuque contagiante, ensurdecedor, catártico, dionisíaco.
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Pirei geral. O ritmo me pegava pela alma. Era a ancestralidade do escravo, o caboclo de penas, das pedreiras e das matas, o bacante, os bisavôs mulatos, o exu-legbara, os mártires cristãos, tudo junto. Diluídos nos borbotões de lágrimas e soluços descontrolados. Catarse pura brotada das vísceras.
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Estive em Itaúnas pela última vez lá há uns 15 anos. Já maduro e careta. Mais para paulista que para riporonga. Em viagem familiar: a mãe, eu e o filho. Foi outra, a última talvez, experiência fundamental lá. Depois eu me esqueci. (Como se a areia tivesse soterrado as lembranças).
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Itaúnas foi o que São Tomé das Letras, Penedo, Macchu-Picchu, Canoa Quebrada, Jericoacoara, Ilha do Mel, Arembepe, etc foram para a geração anterior à minha. Lugares iniciáticos, sagrados, locais onde ocorriam ritos de passagem, fundamentais. Uma espécie de limiar. Portal de mudanças, transformações, crescimento.
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Enquanto escrevo cai uma chuva fora de época. Com intensidade, trovões e relâmpagos. Semelhantes aos das chuvas dos verões em Itaúnas. A luz acaba. Acendemos velas no lugar das lamparinas daquele tempo. Uma boiada silenciosa estoura nas dunas, à luz embaçada da lembranças.
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