quinta-feira, 13 de setembro de 2012

poema-prosa da incapacidade

eu te tenho escrito tão melado, tão excessivo, tão encharcado, tão sentimental - o excesso de imagens, metáforas de gosto questionável, adjetivos e advérbios, frases intermináveis intercaladas, separadas por vírgulas, elipses e anacolutos como fibroses na pele do texto

eu tenho te escrito como se soluçasse, como se tartamudeasse ditongos e hiatos, como se não soubesse o que dizer e dissesse assim mesmo, como se repetisse, apenas invertendo a ordem, sequências monocórdias de signos, de palavras esquisitas do dicionário, como se encobrisse o cheiro azedo da angústia com óleo de pétalas de rosas ou raspasse o ouro que reveste os retábulos das lamúrias e das indecências

eu te tenho escrito como se enfiasse a mão no fundo lodoso para trazer à superfície objetos caídos ali há muito tempo: um porta-joias em forma de bailarina com o fecho enferrujado, uma lata de costura chacoalhando botões que não se usam mais, uma caixa de tampa marchetada de guardar rapé ou cocaína

o que tenho te escrito (horror e pesadelo) são pedaços podres daquilo que eu não consigo expressar: a mão de mulher cortada à altura do punho, ainda com a aliança no dedo anular em decomposição; um braço roído de vermes; a cabeleira de uma cabeça decepada que, depois de lavada, reconheço como tua

eu te queria escrever grandiloquente, profundo, evoluído - sobre a essência dos seres e das coisas  - por exemplo, sobre a alma, os temores que afligem a humanidade, as estrelas, os holocaustos, a fome, as migrações dos grandes mamíferos, a vida dos santos, dos criminosos ou dos revolucionários 
 
eu não suporto mais te escrever como se o vazio e a perda e o abandono provocados pela tua falta fossem a única força que mantêm o universo em movimento

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