eu te tenho escrito tão melado, tão excessivo, tão encharcado, tão sentimental - o excesso de imagens, metáforas de gosto questionável, adjetivos e
advérbios,
frases intermináveis intercaladas, separadas por vírgulas, elipses e
anacolutos
como fibroses na pele do texto
eu tenho te escrito como se soluçasse, como se tartamudeasse ditongos e hiatos, como se não
soubesse o que dizer e dissesse assim mesmo, como se repetisse, apenas
invertendo a ordem, sequências monocórdias de signos, de palavras
esquisitas do dicionário, como se encobrisse o cheiro azedo da angústia com óleo de pétalas de
rosas ou raspasse o ouro que reveste os retábulos das lamúrias e das
indecências
eu te tenho escrito como se enfiasse a mão no fundo lodoso para trazer à superfície objetos
caídos ali há muito tempo: um porta-joias em forma de bailarina com o fecho enferrujado, uma lata de costura chacoalhando botões que não se usam mais, uma caixa de tampa marchetada de guardar rapé ou cocaína
o que tenho te escrito (horror e pesadelo) são pedaços podres daquilo que eu não consigo expressar: a mão de mulher cortada à altura do punho, ainda com a aliança no dedo
anular em decomposição; um braço roído de vermes; a cabeleira de uma cabeça decepada que, depois de lavada, reconheço como
tua
eu te queria escrever grandiloquente, profundo, evoluído - sobre a essência dos seres e das coisas - por exemplo, sobre a alma, os temores que afligem a humanidade, as
estrelas, os holocaustos, a fome, as migrações dos grandes mamíferos, a
vida dos santos, dos criminosos ou dos revolucionários
eu não suporto mais te escrever como se o vazio e a perda e o abandono provocados pela tua falta fossem a única força que mantêm o universo em movimento
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