sábado, 31 de dezembro de 2011

história de natal (10)

(...)
No instante em que a aba do chapéu de nosso pai tocou a palma da mão de nossa mãe, o halo, o cone se desfez. Desmanchou-se também o sentido, a intenção do gesto, amoleceram os dedos, a musculatura, a mão, e o braço de nossa mãe tombou ao longo do corpo. Justo nesse momento, por coincidência ou não, as luzes da sala oscilaram, falharam, piscaram e se apagaram. Assim, ao invés do natural relaxamento de todos, acompanhado do desfazimento do túnel-cone e do gesto de nossa mãe, e terminada a travessia de nosso pai, ao invés de terminar, a tensão prolongou-se, pois o coincidente piscar das luzes foi um sinal, um alerta de que mais acontecimentos viriam, ou explicações, o desfecho previsível. O piscar das luzes estendeu a tensão, impediu de se descongelarem os gestos dos convidados, as cinzas dos cigarros serem batidas nos cinzeiros, as mãos descansarem as taças na mesa, os últimos goles descerem pela garganta, os caroços de azeitona serem jogados pela janela, os guardanapos limparem os cantos das bocas. Nós já estávamos acostumados, a corrente elétrica oscilava, por exemplo, quando mais que dois de nossos irmãos mais velhos demoravam-se ao chuveiro, quando se ligava mais de uma máquina ao mesmo tempo, a ordenhadeira, o descaroçador, a bomba hidráulica, etcétera, a máquina velha do gerador sobrecarregava-se, e era só o tempo das pupilas se acostumarem com o escuro, se dilatarem, para que um de nossos irmãos mais velhos se dirigisse à casa das máquinas e religasse o gerador, às vezes nem era necessário levar a lanterna, tão acostumados estávamos, sempre, assim o pique de luz não deveria ter sido surpresa, afinal todas as luzes da casa estavam acesas, o pisca-pisca da árvore de natal e das guirlandas, o aparelho televisor e o de som, o refrigerador na temperatura máxima de congelamento, mas justo na noite de natal, justo na noite em que nosso pai voltava, depois de tanto tempo desaparecido, a queda de energia nos tomou desprevenidos, porque o escuro se desencadeou o depois, as consequências foram definitivas.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

história de natal (9)

(...)
Nem se quiséssemos nós, os mais pequenos, naquela noite de natal em que os mortos-vivos voltaram, naquela última noite de natal que passaríamos juntos, nem se quiséssemos nós saberíamos, ou imaginaríamos, ou resgataríamos das nossas lembranças recentes, nossa memória imediata, recoberta não com os escombros, os blocos de granito, o cascalho, o entulho dos longos dias da memória dos nossos irmãos mais velhos, mas com uma camada fina de pó, perceptível só quando se passava a ponta do indicador sobre a superfície lisa, vidro polido, acrílico, plástico ainda sem arranhão, fenda ou cicatriz, nós não poderíamos resgatar de nossa memória, reconhecer na silhueta forçando a membrana do escuro, ou depois de rompida, atravessando o corredor aberto entre os nossos irmãos mais velhos e os convidados, o túnel-cone cuja base era a porta da sala e o vértice a palma da mão erguida de nossa mãe, nós não reconheceríamos, na figura pálida, mãos esquálidas, roupa fora de moda nosso pai que partira há muito, quando mal nos haviam retirado os cueiros, as fraldas, quando ainda mamávamos nos peitos de nossa mãe, quando ainda engatinhávamos, catarrentos, nus, pelas tábuas enceradas do chão da sala, ou nos deslocávamos nos andadores, esbarrando nos móveis, atropelando os cães a dormir nos tapetes, derrubando os enfeites da mesa de centro, quando mal balbuciávamos as primeiras sílabas, ensinadas e insistidas por ele, nosso pai, à cabeceira do nosso berço, pa-pá, e teimávamos, ma-mã, talvez pela dificuldade das oclusivas, opostas às facílimas nasais, ou quem sabe por pura teimosia bilabial, ou ainda por sabe-se lá quais bloqueios, ou por qualquer razão nosso pai partira e não havia resquício consciente de sua presença na nossa memória, a dos mais pequenos, e, portanto, não tínhamos obrigação de reconhecê-lo, ao contrário dos nossos irmãos mais velhos, que pressentiram, mesmo antes, quando o túnel cônico se formara, quando o vulto ainda não rompera a membrana do escuro da base do cone e avançava na direção do vértice imaginado, na palma da mão de nossa mãe, mesmo pressentido não houve como evitar o espanto dos nossos irmãos mais velhos, disfarçar o constrangimento desnecessário, porém doloroso da lembrança, dor que somente aos nossos irmãos mais velhos doía, osso fraturado, cárie, abscesso, dor ressuscitada e reencarnada em nosso pai, atravessando, lento, a sala, olhando de um lado e outro, também reconhecendo, acenando, cumprimentando ora com os olhos, ora pouco erguendo o dedo indicador da mão esquálida, pendente, ora com um movimento mínimo dos lábios, esgar à guisa de sorriso, reconhecendo entre o grupo formado pelos convidados e por nossos irmãos mais velhos os nomes, as feições, os caráteres de cada um dos filhos dele, nosso pai, ou, melhor, dos filhos que ele se lembrava, pois também nós, os mais pequenos, o éramos, filhos, todos, agrupados do lado direito, do lado esquerdo, na base do mesmo círculo que se formava e se fechava na mão espalmada erguida de nossa mãe.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

foto do trabalho 5

fotos do trabalho 4




fotos do trabalho 3




fotos do trabalho 2




fotos do trabalho 1




história de natal (8)

(...)
O gesto de nossa mãe, no meio da sala, o braço direito estendido, mão à altura dos ombros, nem adeus nem aguardem-um-momentinho, por si só, sem palavra que o reforçasse, imperativo, interrompeu ao meio a orgia, suspendeu os movimentos, os chistes, os trocadilhos, as risotas, cortou a nuvem de fumaça de cigarros, a mão espalmada de nossa mãe, voltada para cada cara, pronta para esbofetear cada um dos nossos irmãos mais velhos, para expulsar, apontando a porta, cada um dos convidados, os amigos, as namoradas, as moças e moços de reputação duvidosa, para nos afagar, a nós, os mais pequenos, as nossas barrigas congestionadas, para calcular a febre nas nossas testas, nada disso. Além de impor o silêncio o gesto de nossa mãe abriu um corredor entre os convivas que permaneciam de pé, uma passagem, um túnel afunilado, desde o vértice, no centro da palma da mão erguida de nossa mãe até o escuro emoldurado da porta da entrada aberta, por onde chegou, e pela primeira vez percebemos, o som grave, amplificado, monocórdio, abaixo do tom, o quase zumbido, telúrico, dos mortos-vivos no jardim, entre o curral e a varanda. Os olhares voltaram-se para a porta, todos, quase ao mesmo tempo, e viram, no escuro da noite emoldurado pelo umbral, em outro tom de escuro, mais denso, opaco, talvez mais aveludado, o vulto, a silhueta avançando, hesitante, lenta, primeiro a mão, como se forçasse para romper a membrana elástica que dividia o escuro da noite de fora da claridade amarela, esfumada, matizada das cores coloridas do pisca-pisca da árvore de natal e do aparelho televisor dentro da casa, como se titubeasse, os dedos procurando uma maçaneta invisível, inexistente, para abrir a porta já aberta, como se pedisse licença para entrar, primeiro o braço, depois o ombro, a ponta do nariz, o queixo proeminente, a aba do chapéu avançando, rompendo a película que dividia o escuro do claro, ou o claro do escuro, do ponto de vista de todos os olhares, a atenção dos espectadores suspensa, os contornos, as feições, o jeito de nosso pai que atravessava o túnel, através dos convidados e das convidadas, e dos nossos irmãos mais velhos, e voltava para casa depois de tantos anos desaparecido.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

história de natal (7)

(...)
Nossa mãe entrou sem olhar os nossos irmãos mais velhos, sem ouvir as interjeições de espanto, as desculpas balbuciadas, os cochichos, as risotas irônicas dos convivas, sem tropeçar em qualquer um de nós, os mais pequenos, deitados pelo chão, como cães, pela sala, nos cantos, nos trapos, nos tapetes, nas almofadas, aos pés dos móveis. Atravessou a sala até a estante, desligou o aparelho de som, diminuiu o volume do televisor, virou-se e olhou nos olhos de cada um, que àquela altura tinham se calado, reunidos em círculo em volta de nossa mãe, a parca branca suja de lama, os cabelos desalinhados, as atenções, os olhares no olhar dela, ofuscados pela contraluz colorida das lâmpadas do pisca-pisca da árvore de natal, pelas cores do aparelho de televisão, esperando todos, nossos irmãos mais velhos, os amigos, as namoradas e as moças e moços de conduta duvidosa, esperando o natural naquele tipo de situação, o presumido, que nossa mãe repreendesse os nossos irmãos mais velhos, que expulsasse os convidados, que recolhesse a nós, os mais pequenos, um a um, e nos levasse para as camas uns, para os berços outros, ou simplesmente que se servisse, à mesa próxima, onde fumegavam os assados, o porco, os perus, os frangos, os patos, o consomê, a farofa, a maionese, o arroz branco, os pudins, as musses, os cremes em neve revirados, as frutas nas fruteiras cobertas de moscas, as garrafas de vinho espumante, as latas de cerveja, os copos de uísque pela metade. Porém nossa mãe não estava faminta, nossa mãe sequer desviou o olhar para alguns de nós, os mais pequenos, que acordavam, choramingando, chamando por ela, sem entender o que acontecia, nossa mãe não expulsou os convidados, não repreendeu os nossos irmãos pelo desrespeito, pela impertinência, por aquela quase orgia, justo na noite de natal. Nossa mãe apenas ergueu a mão, a palma voltada para todos os olhares, gesto que pela primeira vez não deixava dúvida, nem de até-logo nem esperem-um-minutinho, gesto dessa vez imperativo de silêncios, que congelava de expectativa o coração de todos, que dissipava os efeitos do vinho, do uísque, da cerveja, que cortava a nuvem de fumaça dos cigarros ao meio, gesto que por si só repreendia os nossos irmãos mais velhos, expulsava os convivas, e somente não levava a nós, os mais pequenos, um a um para nossas camas e berços porque possuía apenas o poder, a energia, o significado, mas não passava de um gesto, e por causa do silêncio imposto nós adivinhamos, antes de ouvir o som familiar, quase zumbido, o rumorejar monocórdio de frequência baixa, quase inaudível, quase percebido somente por sua vibração, vinda da terra, o som que os mortos-vivos às vezes faziam enquanto esperavam minha mãe distribuir-lhes as prendas, sob a neblina ou a garoa fina, no jardim, entre o curral e a varanda da casa, nas manhãs de natal.

sábado, 24 de dezembro de 2011

história de natal (6)

(...)
Nós, os mais pequenos, exaustos de choramingar pela casa durante todo o dia, mal-e-mal limpados dos mijos e das fezes, mal-e-mal penteados pela empregada, a fome aplacada pelos restos dos pratos, pelas coxas de frango, de pato ou de peru que os nossos irmãos mais velhos nos atiravam, da mesma forma como se atirava pedaços de carne crua aos cães, alguns de nós, os mais pequenos, dormíamos pelos cantos, sobre os tapetes, sobre o capacho da entrada, sobre os trapos dos cachorros e dos gatos, ou, os mais sortudos, sobre alguma almofada surrupiada da sala de visitas, enquanto outros, excitados pela música saindo dos amplificadores de som, do aparelho televisor ligado no último volume, sem ninguém assistir, pelo cheiro dos assados misturado ao cheiro de cerveja derramada e cinzas e fumaça de cigarro, pelo vai-e-vem dos nossos irmãos mais velhos, pelas vozes dos amigos dos nossos irmãos mais velhos, pelos afagos, pelos beliscões nas bochechas dados pelas namoradas e pelas as amigas das namoradas dos amigos e dos nossos irmãos mais velhos e pelas moças de reputação duvidosa, que mal se distinguiam umas das outras, ou ainda, por pura gula, esperando as sobremesas que sabe-se lá quando seriam servidas, ninguém, nem nós, os mais pequenos, nem os nossos irmãos mais velhos e os amigos, e as namoradas, etcétera, ouviu, nem poderia ter ouvido o barulho do motor, nem viu, pelas janelas da sala, os faróis da caminhonete apontando na estrada, primeiro um ponto de luz que podia ser confundido a um vaga-lume deslocando-se lento no escuro e, mais próximo, o duplo foco horizontal em forma de cone, ocultando-se e depois ressurgindo, nas curvas, nos tufos de mata, a freada nas pedras da garagem o bater das duas portas do carro, o plim-plim do alarme acionado, ninguém viu ou poderia ter visto o contorno de nossa mãe parada no umbral da porta da sala, ou melhor, a silhueta um pouco mais escura de nossa mãe recortada no escuro da noite do lado de fora, e mesmo se algum de nós, os mais pequenos, ou mesmo um dos nossos irmãos mais velhos tivesse visto, não teria visto o segundo vulto, em segundo plano ao primeiro da silhueta da nossa mãe no umbral da porta, em um terceiro tom de escuro, intermediário entre o da silhueta de nossa mãe e o escuro da noite, não reconheceria a silhueta de nosso pai, e, mais além, no gramado entre a varanda e o curral, totalmente imersos no escuro do escuro, sob a chuva fina, a multidão de mortos-vivos, imóveis, oscilando, ofegantes, as mãos esquálidas pendidas, um brilho fraquinho vermelho no meio das olheiras escuras, que nossa mãe resgatara, e nos trouxera, de presente, na noite de natal.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

história de natal (5)

(...)
Durante o período que nossa mãe esteve ausente a confusão na casa tomou proporções de caos, incontrolada, agravada pelos apelos inúteis da empregada com a mão suja de penugem e de sangue das galinhas, dos patos e dos perus degolados e depenados na água fervente, de farofa para rechear o leitão, de cebola e de ervas finas no molho para marinar o novilho, tentando colocar um mínimo de ordem, pelo choro dos mais pequenos, mijados, cagados, famintos ou as três coisas juntas, que se estapeavam, puxavam os cabelos ou enfiavam os dedos nos olhos e nos narizes uns dos outros, pelo mugido das vacas que entraram no jardim pela porteira deixada aberta por nossa mãe ao sair de madrugada, e espreitavam com os focinhos encostados nos vidros das janelas o movimento dentro da casa, onde nossos irmãos mais velhos gargalhavam, falavam palavrões, uns jogando truco, outros bebendo, quebrando copos cheios de cerveja e batendo as cinzas dos cigarros no chão ao mesmo tempo, outros grudados no telefone, convidando os amigos, as namoradas, as namoradas dos amigos, as moças e moços de reputação duvidosa para a ceia, mal sabendo nossos irmãos mais velhos que o pior estava prestes a acontecer, que o mal, ou a surpresa, ou o inusitado galopavam cavalos ligeiros, que em breve aquela faina desgovernada causada pela ausência dos mortos-vivos na madrugada da véspera de natal, aquela balbúrdia, aquele deus-nos-acuda, seria a primeira e a última, como seria último o natal que passaríamos todos juntos.

história de natal (4)

(...)
No natal em que os mortos-vivos não vieram e nossa mãe desaparecera nossos irmãos mais velhos se alegraram, pois não seriam obrigados por nossa mãe a arrancar da terra os tufos de grama amarelada e depois seca, entre a varanda e o curral, onde os mortos-vivos pisavam, descalços, enquanto esperavam, oscilando, sob a neblina ou sob a chuva fina, os presentes e os cumprimentos de nossa mãe, e replantar novas mudas, retiradas à enxada além da cerca do curral, onde touceiras de grama cresciam, fartas, viçosas, verdes, em estado quase selvagem.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

imagem do dream exchange

www.dreamexchange.blogspot.com

história de natal (3)

(...)
Naquele natal, pouco antes do inevitável acontecer, pela primeira vez os mortos-vivos não vieram. Todos nós, exceto os nossos irmãos mais velhos sentimos a falta deles. Nossa mãe, que se preparara durante as últimas semanas para recebê-los, para presenteá-los com bugigangas, para cumprimentar os adultos e afagar as crianças, foi a única que se ressentiu. E nada adiantou pedir aos nossos irmãos mais velhos para procurá-los, para saber a razão da ausência. Nossa mãe estava certa de algo muito grave acontecera ou, pior, estava prestes a acontecer. Nossos irmãos mais velhos simplesmente recusaram-se a ir, alegando a intransitabilidade das estradas, os atolamentos, os deslizamentos, a vacinação das vacas, o abate dos porcos, do novilho, dos frangos, dos patos e dos perus para a ceia de natal, e mesmo a inutilidade e o despropósito daquelas visitas, que, segundo as palavras deles, já acabavam tarde. Percebendo a inutilidade das súplicas e a frieza dos corações dos nossos irmãos mais velhos, nossa mãe decidiu ela mesma aventurar-se na madrugada invernosa. Vestiu a parca branca com capucho, os tamanquinhos holandeses que nosso pai a presenteara antes do casamento, encontrou as chaves da caminhonete escondida por nossos irmãos mais velhos no velho cofre de prata sobre o aparador e partiu pela estrada do leste, por onde os mortos-vivos sempre vieram. Nós, os mais pequenos, passamos o dia a vagar pelos cômodos da casa, ora choramingando e chamando baixinho o nome da nossa mãe, ora escapulindo das cusparadas de nossos irmãos mais velhos que a cada minuto se tornavam mais e mais impertinentes. O que todos pressentiam, mas ninguém arriscava expressar em palavras, nem os nossos irmãos mais velhos em sua onda de histeria, nem a empregada incapaz de conter o caos, e nem nós, os mais pequenos, transidos de medo, mijados, cagados, sem escovar os dentes ou pentear os cabelos, era a certeza de que nunca mais ouviríamos a voz clara e firme de nossa mãe a nos repreender, de que nunca mais sentiríamos o calor da mão da nossa mãe sobre a nossa barriga congestionada, de que nunca mais teríamos com quem reclamar dos abusos abomináveis cometidos por nossos irmãos mais velhos.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

história de natal (2)

(...)
Ao contrário dos outros dias, ao invés de lavar as mãos e o rosto com sabonete de glicerina na água com folha de laranja que a empregada trazia na bacia e enxugar-se na toalha bordada, e acariciar os nossos rostos antes de sentar-se à cabeceira da mesa, naquele dia nossa mãe falou pouco e mal tocou na comida do prato. Aguardou que comêssemos, que brigássemos para escolher a coxa, a moela, a forquilha, o coração do frango, que medíssemos o pedaço maior do pudim, a colher mais cheia do doce de leite, que nossos irmãos mais velhos tomassem a primeira, a segunda e a terceira xícara de café, que acendessem e fumassem e batessem as cinzas e apagassem os tocos dos cigarros nos cinzeiros de ferro batido, que a empregada tirasse os pratos e as tigelas e as travessas, para então, com o olhar acima das nossas cabeças sentadas, focado no nada, ou talvez atravessando a parede espessa atrás da qual se avistava as montanhas, o céu e o mar atrás das montanhas, para nossa mãe nos dizer que nosso pai viria, talvez para o jantar, talvez na próxima semana, talvez quando já estivéssemos crescidos, e quando nosso pai chegasse, ela, nossa mãe, provavelmente não estaria mais entre nós.

história de natal (1)

(...)
Os mortos-vivos chegavam durante a madrugada da véspera do natal. Acotovelavam-se em silêncio, ou, no máximo em um murmúrio grave, monocórdio, abaixo do tom, quase um zumbido, sob a neblina ou sob a garoa fria, na parte da frente da casa, esperando, passivos, entre a varanda e os currais. Não fosse pelas roupas fora de moda, pela palidez esquálida dos rostos, pelas mãos muito finas sempre dependuradas ou as olheiras quase negras eles podiam ser facilmente confundidos com peregrinos, visitas ou parentes distantes que há muito tempo não víamos. Nós, os mais pequenos, éramos terminantemente proibidos de nos levantar da cama, mas mesmo assim nos espremíamos no vidro da janela do quarto para ver nossa mãe, vestida com a parca branca com capucho, e calçada com os tamanquinhos holandeses que nosso pai a presenteara antes de se casarem - para ver nossa mãe distribuindo a cada um dos mortos-vivos uma lembrança embrulhada em papel laminado, um pacote de fumo, uma chave-de-fenda, um canivete vagabundo para os homens, um jogo de agulhas, retroses coloridos, batons pela metade para as mulheres, e pequenos bonecos modelados em massa de biscuí para as crianças, independente se meninos ou meninas. Em seguida à cada presente entregue nossa mãe apertava de leve, quase sem tocar, as mãos dos homens, beijava quase sem tocar as faces das mulheres e afundava os dedos quase sem tocar os cabelos embarrados das crianças. Esse ritual durava toda a manhã e às vezes parte da tarde e só era interrompido por não mais que uma hora, por volta do meio-dia, quando a empregada avisava, da varanda, que o almoço estava servido. Então, do terceiro degrau ela virava-se e acenava aos mortos-vivos, uma mistura de adeusinho e um-momentinho, e os mortos-vivos ficavam lá, parados, os pés firmemente apoiados na lama misturada com esterco e grama pisoteada, oscilando de leve, sem nenhum esboço de cansaço, pois, como é sabido, os mortos-vivos nunca se cansam, os mortos-vivos não sentem fome, os mortos-vivos possuem a eternidade.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

do diário anterior (5)

(...)
Quando nós nos esquecíamos e mencionávamos sem querer durante o almoço os dobrões de prata, os patacões de ouro, as gemas de cores e tamanhos variados, as correntinhas de ouro com seus respectivos escapulários ou camafeus, os braceletes em forma de serpente com olhos de rubis, os pingentes em forma de escaravelhos cor de esmeralda, os copaços de bronze marchetados, os medalhões do baú guardado no sótão, nossa mãe batia com mais força a colher de pau na borda do caldeirão, apagava o fogo, enxugava as mãos no pano de prato bordado com pimentas vermelhas, abria a gaveta de cima, tirava da bainha a faca de cabo preto das cebolas e riscava horizontalmente o ar três vezes, na altura dos nossos olhos, como se para cortar qualquer resquício, qualquer vínculo, qualquer tentáculo, qualquer âncora, qualquer amarra que nos arrastasse outra vez para o meio da tempestade onde embicava desgovernada a nau fantasma que sabíamos ter pertencido ao nosso pai.

do diário anterior (4)

(...)
Quando ainda éramos capazes de nos equilibrar sobre as nossas próprias pernas e enxergarmos mais de um palmo adiante dos nossos narizes, pouco antes de anoitecer nós cavávamos um buraco na superfície do gelo sobre o lago, com diâmetro suficiente para que pudéssemos mergulhar. De madrugada nós abríamos as portas e as janelas da casa e deixávamos o vento e as cores cambiantes da aurora boreal cobrirem os nossos corpos. E quando a pele enregelava e os dentes trincavam de frio nós pulávamos da cama, descíamos correndo dos nossos quartos, atravessávamos a sala passando bem longe do fogo, cruzávamos o jardim (cuja grama congelada cortava os nossos pés), saltávamos a cerca até a superfície do lago e constatávamos que onde antes era o buraco cavado durante a tarde não passava de um círculo torto de gelo mais fino e transparente por onde só nos restava assistir ao movimento lento dos cabelos das algas no fundo da água.

domingo, 18 de dezembro de 2011

do diário anterior (3)

(...)
Antes os mortos ainda não eram assustadores. Uma vez por semana vinham cear conosco na varanda ao anoitecer. Os gatos subiam para os telhados, os cães uivavam pouco e sem vontade e se enroscavam pelos cantos. Os mortos vinham e tiravam dos bolsos cheios de terra histórias misturadas a sementes, a fiapos de tecido podre, a botões de osso que há muito tempo não se fabricavam mais. Geralmente as histórias eram boas de serem ouvidas. Quando não valiam a pena e nós nos dispersávamos, os mortos tiravam os instrumentos das sacolas e cantavam e tocavam e dançavam músicas e danças tão alegres que nos faziam esquecer de que nós éramos os vivos e que mais cedo ou mais tarde seríamos nós os que tocariam e cantariam e dançariam e contariam histórias na varanda ao anoitecer.

do diário anterior (2)

(...)
Antes, na parte da frente havia janelas largas que se abriam para paisagens diurnas, mar de ressaca, praias ensolaradas emolduradas por coqueiros, picos cobertos de neve, ravinas de girassois ondulando ao vento, cânions, manadas de bisões emergindo de nuvem de poeira ou girafas, zebras e elefantes pastando no meio da savana. Nos fundos as janelas eram menores, quase respiradouros, basculantes, mais parecidas com escotilhas, de onde a noite se desenrolva suave, como uma névoa, um véu, um rolo de algodão negro envolvendo as coisas.

do diário anterior (1)

(...)
Antes havia botões e depois flores e depois frutos a brotar nas pontas dos galhos, havia ovos de larvas a escovar das folhas, havia formigas subindo pelo tronco, havia até ninhos desajetiados que mal se sustentavam em duas ou três bifurcações de ramos. Havia a terra fofa de sereno logo de manhã, mosquitos a picar os tornozelos ou os ombros descobertos, réstias de sol ou quando muito gotas da chuva noturna pingando no nariz e respingando no rosto quando soprava o vento. Havia também o trabalho subterrâneo das larvas, as crisálidas enterradas durante anos para nascerem borboletas de apenas um dia, túneis das térmites aflorando tão delicados na superfície vermelha da terra, havia pedras quase lisas como ovos de avestruzes ou de répteis pré-históricos e debaixo delas ovos verdadeiros dos lagartos, centopeias enrolando-se em espirais, esporões bifurcados das lacraias, escorpiões vermelhos e besouros verde-esmeralda tão pequenos quanto broches que corroíam as folhas.

sábado, 17 de dezembro de 2011

diário gerúndio 5

Estipulando prazos e tramando escaramuças. Passando a limpo as memórias do porvir. Dessalgando o passado. Retardando o agora. Singularizando a pluralidade. Hesitando em mergulhar no vazio. Perdendo o fôlego. Queimando as naus. Recolhendo a água das goteiras. Providenciando guarda-chuva & galochas & parca branca com capucho. Cantando e dançando in the rain. Molhando os pés & a alma. Espalhando ventos e colhendo tempestade. Atravessando o arco-íris. Dançando no escuro. Sapateando sobre o teu caixão. Cantarolando com Aracy. Matando as saudades & colocando a conversa em dia & estudando os descaminhos. Ajustando as sinastrias. Sesteando depois do almoço. Dando banho nos cães. Trocando os móveis de lugar. Buscando um lugar ao sol.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

diário gerúndio 4

Tomando uísque com guaraná. Tomando chá de cogumelos com leite condensado. Tomando leitinho quente antes de dormir. Tomando chá de cicuta com stevia antes da próxima hecatombe. Tomando água. Comendo tortelete de limão. Descansando à sombra das cerejeiras em flor. Puxando ferros com a terceira e a quarta idades. Puxando papo com a coletora de impostos. Arrastando as asinhas para a aeromoça. Dando trela para o desalento. Dando linha para o inconsútil. Amarrando o mal. Desobstruindo os dutos urinários. Atropelando as regrinhas do consenso. Procurando entender auschwitz e marcel proust. Discutindo imortalidade com a preta-velha. Agendando compromissos para o próximo milênio. Classificando a intemporalidade. Montando um camelo no oásis. Dando uma de sharriar. Cavalgando o corcel de mohamed. Consumindo a última coca-cola do deserto.

diário gerúndio 3

Recalculando os créditos do karma. Desenhando em pedacinhos de papel de seda. Rindo das próprias idiossincrasias. Trocando a terra dos vasos de palmeirinhas. Levando a gata manhosa pela décima vez ao psicoterapeuta. Enviando torpedos para os desafetos. Achando a vida cor-de-rosa apesar de tudo. Ligando o fucko-you. Assistindo cowboys & aliens. Agarrando as oportunidades pelos cabelos. Estalando os artelhos. Cortando as unhas. Ouvindo mantras. Ouvindo nina hagen. Ouvindo wagner. Ouvindo o coraçãozinho do feto no ultrassom. Ouvindo as vibes dos visitantes noturnos. Ouvindo o poema da menina gorda. Perguntando se ele gosta de mim? Ouvindo as trombetas dos anjos vingadores. Desconstruindo o pilar da ponte de tédio que vai de mim para o outro. Dizendo que te amo.

domingo, 11 de dezembro de 2011

diário gerúndio 2

Administrando egos alheios. Finalizando relações sem sentido. Comemorando o ano que se finda. Fingindo que tudo pode mudar. Pensando no México e no Rio Douro. Lambendo feridas que não cicatrizam. Revendo Oscar Wilde. Arrancando as ervas daninhas do gramado. Cortando o mal pela raiz. Adiantando o protelado. Dormitando na repartição. Fingindo a dor que deveras sinto. Avançando o sinal vermelho do insensato coração. Rompendo amarras. Rompendo barreiras eletrônicas. Rompendo barricadas. Superando o superego. Tomando ansiolíticos e 500 ml de energético. Aprendendo a lição. Decorando o papel de madrasta má. Dançando até os calos doerem. Ouvindo o silêncio ancestral. Escrevendo aleivosias. Desejando tudo de bom para os alteregos.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

escritos arqueológicos / fragmentos proto-históricos 2

Halo. A lua sobre os telhados da cidade submersa. Os olhos vermelhos dos peixes-curiangos. As folhas das árvores-algas ao sabor das correntes aquáticas. Barcos fantasmas singram a superfície. Esqueletos amarrados nos mastros. Fogos-fátuos. Sirenes. Um farol ao longe.
...
Espíritos dos ancestrais vagueiam à noite no pomar. Na amurada. Nas escadarias do salão nupcial. Roçando os cascos dos barcos na areia. As pedras das soleiras. As vigas dos casebres. Atravessam as grossas portas inutilmente protegidas por escapulários & bentinhos. E se aninham ao pé do fogo contando histórias para ninguém ouvir.
...
Imagens do dia: Os fragmentos do corpo cobertos por um lençol de neve. A mulher diante dos destroços amamenta o bebê-caveira. Os enforcados na praça vermelha oscilam ao sabor da brisa. A nau dos enjeitados encalhada no telhado. A morte do homem-girafa e o nascimento do orangotango albino. O alarme das sirenas na travessia de Gibraltar.
...
Dormir o sono eterno e só acordar depois do meio-dia.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

diário gerúndio

Arrumando os livros. Dormindo mal. Ouvindo Debussy. Trabalhando na entressafra. Lendo sobre a Rússia. Cuidando da gata manhosa. Relevando os defeitos alheios. Buscando intensidades. Recolhendo cadáveres nos umbrais. Admirando o chão cor de fúcsia. Colhendo ventania. Esperando Godot. Preparando geleia de pitanga. Dependurando quadros. Desencaixotando o passado. Revisitando as situações-limite. Respondendo s'il vous plaît. Selecionando silêncios. Falando pelos cotovelos. Andando a pé. Purificando o espírito. Escapulindo. Engambelando o fim próximo. Roendo as unhas.

escritos arqueológicos / fragmentos proto-históricos

Pausa. O silêncio das eras. Das esferas. Respiro. O escuro. O vazio contraditório que permeia os corpos sólidos. Os corpos etéreos. As estrelas. Os quasares. Os buracos negros. As nuvens radioativas. Aguardo o fim.
...
Não me lembro onde eu estava quando choveu ouro. Quando o touro fecundou a rainha. Quando a águia raptou nosso filho. Quando o barco atravessou as caribdes. Quando a pera rolou de novo montanha abaixo. Quando o abutre arrancou teu fígado. Quando cuspiram no rosto da moça. Quando ele se virou para olhar a morta.
...
Sonhávamos.
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Nereidas acompanham o nosso último banho de mar. O seu corpo branco contra o cinza da água. Contra o cinza do céu. Contra o cinza da areia. Os primeiros pingos da chuva lavam a tinta do cabelo do homem até o desejo dele secar.
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Paciência. O que ainda nos falta?

domingo, 4 de dezembro de 2011

escritos arqueológicos última parte

Enclausurado em um 3 metros cúbicos de matéria. Mármore, madeira, cimento, metal, porcelana, papel, água, ar. Carne e osso circundados de matéria. Dentro e fora. Presos por fios de aço ao espaço, ao mundo, ao real. 3 metros cúbicos de existência dentro do nada.
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Luz branca. Zumbido em si-bemol. Ininterruptamente.
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Fora, o fogo das entranhas, dos vulcões, do inferno. Ou vácuo, o neutro, o nada do purgatório. O paraíso é dentro.
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O arco das asas brancas do voo. Da subida e da queda. Sonho.
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A deusa-deus negra da morte e da vida vagueia. Sonâmbulo-sonâmbula. Nunca-agora. O nome, o eco. Por vales, abismos e montanhas. Tremor. Trovão. Treva.
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Depois, a volta ao começo.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

escritos arqueológicos parte 9

Aquele que não tem pele. Aquele em carne viva. Aquele das madrugadas insones. Das bolhas de sangue, das secreções que supuram o quarto. Aquele que escorre, gota a gota, pelas escadas do prédio. Até rua. Aquele que inunda de si a cidade inteira.
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O menino nu. Espirais crescentes de trechos melódicos. Fantasmas atrás dos vidros. Atrás das lentes das máquinas fotográficas. Carros em alta velocidade riscando a escuridão de vermelho e mercúrio. Livros nas prateleiras. O menino mudo. Ossos, manuscritos e restos de comida no porão. Baratas nos cantos do quarto. O menino morto.
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Minha vida de transeunte. Engulo o vulcão de mim. Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Desespero.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

escritos arqueológicos parte 8

Tudo está envolto em hipersensibilidade. Meus olhos cegos, meus ouvidos obstruídos. Ajoelho-me aos pés de um deus anônimo, pagão e invisível que sou eu mesmo do lado de dentro.
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A raiz brotou. A ramagem espalhou-se, viçosa, e floresceu. Os frutos de vidro vermelho trincavam nos caules antes de se espatifar no chão, espalhando centelhas de eletricidade.
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Insetos gigantes pululam. Amebas e protozoários nos pântanos. No céu o sobrevôo dos pterodáctilos. Ictiossauros e plesiosauros nas profundezas. Cordilheira de vulcões eruptos no horizonte. Sou o primeiro homem antes do amanhecer no jardim do éden.
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O que você procura está nas entrelinhas. Você me instiga a te provocar. Não te ensinarei o rumo sinuoso das palavras. Vagueia desgovernado direto para o abismo, manada, multidão, rebanho-um.
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A próxima palavra-armadilha cobre o fosso com estacas fincadas no fundo.
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Você me cria e eu te destruo. Você a luz, eu o negro. Quando eu te mato, você me renasce. Prisioneiros do ciclo perpétuo. O sol nasce.