quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

história de natal (9)

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Nem se quiséssemos nós, os mais pequenos, naquela noite de natal em que os mortos-vivos voltaram, naquela última noite de natal que passaríamos juntos, nem se quiséssemos nós saberíamos, ou imaginaríamos, ou resgataríamos das nossas lembranças recentes, nossa memória imediata, recoberta não com os escombros, os blocos de granito, o cascalho, o entulho dos longos dias da memória dos nossos irmãos mais velhos, mas com uma camada fina de pó, perceptível só quando se passava a ponta do indicador sobre a superfície lisa, vidro polido, acrílico, plástico ainda sem arranhão, fenda ou cicatriz, nós não poderíamos resgatar de nossa memória, reconhecer na silhueta forçando a membrana do escuro, ou depois de rompida, atravessando o corredor aberto entre os nossos irmãos mais velhos e os convidados, o túnel-cone cuja base era a porta da sala e o vértice a palma da mão erguida de nossa mãe, nós não reconheceríamos, na figura pálida, mãos esquálidas, roupa fora de moda nosso pai que partira há muito, quando mal nos haviam retirado os cueiros, as fraldas, quando ainda mamávamos nos peitos de nossa mãe, quando ainda engatinhávamos, catarrentos, nus, pelas tábuas enceradas do chão da sala, ou nos deslocávamos nos andadores, esbarrando nos móveis, atropelando os cães a dormir nos tapetes, derrubando os enfeites da mesa de centro, quando mal balbuciávamos as primeiras sílabas, ensinadas e insistidas por ele, nosso pai, à cabeceira do nosso berço, pa-pá, e teimávamos, ma-mã, talvez pela dificuldade das oclusivas, opostas às facílimas nasais, ou quem sabe por pura teimosia bilabial, ou ainda por sabe-se lá quais bloqueios, ou por qualquer razão nosso pai partira e não havia resquício consciente de sua presença na nossa memória, a dos mais pequenos, e, portanto, não tínhamos obrigação de reconhecê-lo, ao contrário dos nossos irmãos mais velhos, que pressentiram, mesmo antes, quando o túnel cônico se formara, quando o vulto ainda não rompera a membrana do escuro da base do cone e avançava na direção do vértice imaginado, na palma da mão de nossa mãe, mesmo pressentido não houve como evitar o espanto dos nossos irmãos mais velhos, disfarçar o constrangimento desnecessário, porém doloroso da lembrança, dor que somente aos nossos irmãos mais velhos doía, osso fraturado, cárie, abscesso, dor ressuscitada e reencarnada em nosso pai, atravessando, lento, a sala, olhando de um lado e outro, também reconhecendo, acenando, cumprimentando ora com os olhos, ora pouco erguendo o dedo indicador da mão esquálida, pendente, ora com um movimento mínimo dos lábios, esgar à guisa de sorriso, reconhecendo entre o grupo formado pelos convidados e por nossos irmãos mais velhos os nomes, as feições, os caráteres de cada um dos filhos dele, nosso pai, ou, melhor, dos filhos que ele se lembrava, pois também nós, os mais pequenos, o éramos, filhos, todos, agrupados do lado direito, do lado esquerdo, na base do mesmo círculo que se formava e se fechava na mão espalmada erguida de nossa mãe.

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