sábado, 24 de dezembro de 2011

história de natal (6)

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Nós, os mais pequenos, exaustos de choramingar pela casa durante todo o dia, mal-e-mal limpados dos mijos e das fezes, mal-e-mal penteados pela empregada, a fome aplacada pelos restos dos pratos, pelas coxas de frango, de pato ou de peru que os nossos irmãos mais velhos nos atiravam, da mesma forma como se atirava pedaços de carne crua aos cães, alguns de nós, os mais pequenos, dormíamos pelos cantos, sobre os tapetes, sobre o capacho da entrada, sobre os trapos dos cachorros e dos gatos, ou, os mais sortudos, sobre alguma almofada surrupiada da sala de visitas, enquanto outros, excitados pela música saindo dos amplificadores de som, do aparelho televisor ligado no último volume, sem ninguém assistir, pelo cheiro dos assados misturado ao cheiro de cerveja derramada e cinzas e fumaça de cigarro, pelo vai-e-vem dos nossos irmãos mais velhos, pelas vozes dos amigos dos nossos irmãos mais velhos, pelos afagos, pelos beliscões nas bochechas dados pelas namoradas e pelas as amigas das namoradas dos amigos e dos nossos irmãos mais velhos e pelas moças de reputação duvidosa, que mal se distinguiam umas das outras, ou ainda, por pura gula, esperando as sobremesas que sabe-se lá quando seriam servidas, ninguém, nem nós, os mais pequenos, nem os nossos irmãos mais velhos e os amigos, e as namoradas, etcétera, ouviu, nem poderia ter ouvido o barulho do motor, nem viu, pelas janelas da sala, os faróis da caminhonete apontando na estrada, primeiro um ponto de luz que podia ser confundido a um vaga-lume deslocando-se lento no escuro e, mais próximo, o duplo foco horizontal em forma de cone, ocultando-se e depois ressurgindo, nas curvas, nos tufos de mata, a freada nas pedras da garagem o bater das duas portas do carro, o plim-plim do alarme acionado, ninguém viu ou poderia ter visto o contorno de nossa mãe parada no umbral da porta da sala, ou melhor, a silhueta um pouco mais escura de nossa mãe recortada no escuro da noite do lado de fora, e mesmo se algum de nós, os mais pequenos, ou mesmo um dos nossos irmãos mais velhos tivesse visto, não teria visto o segundo vulto, em segundo plano ao primeiro da silhueta da nossa mãe no umbral da porta, em um terceiro tom de escuro, intermediário entre o da silhueta de nossa mãe e o escuro da noite, não reconheceria a silhueta de nosso pai, e, mais além, no gramado entre a varanda e o curral, totalmente imersos no escuro do escuro, sob a chuva fina, a multidão de mortos-vivos, imóveis, oscilando, ofegantes, as mãos esquálidas pendidas, um brilho fraquinho vermelho no meio das olheiras escuras, que nossa mãe resgatara, e nos trouxera, de presente, na noite de natal.

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