segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

história de natal (7)

(...)
Nossa mãe entrou sem olhar os nossos irmãos mais velhos, sem ouvir as interjeições de espanto, as desculpas balbuciadas, os cochichos, as risotas irônicas dos convivas, sem tropeçar em qualquer um de nós, os mais pequenos, deitados pelo chão, como cães, pela sala, nos cantos, nos trapos, nos tapetes, nas almofadas, aos pés dos móveis. Atravessou a sala até a estante, desligou o aparelho de som, diminuiu o volume do televisor, virou-se e olhou nos olhos de cada um, que àquela altura tinham se calado, reunidos em círculo em volta de nossa mãe, a parca branca suja de lama, os cabelos desalinhados, as atenções, os olhares no olhar dela, ofuscados pela contraluz colorida das lâmpadas do pisca-pisca da árvore de natal, pelas cores do aparelho de televisão, esperando todos, nossos irmãos mais velhos, os amigos, as namoradas e as moças e moços de conduta duvidosa, esperando o natural naquele tipo de situação, o presumido, que nossa mãe repreendesse os nossos irmãos mais velhos, que expulsasse os convidados, que recolhesse a nós, os mais pequenos, um a um, e nos levasse para as camas uns, para os berços outros, ou simplesmente que se servisse, à mesa próxima, onde fumegavam os assados, o porco, os perus, os frangos, os patos, o consomê, a farofa, a maionese, o arroz branco, os pudins, as musses, os cremes em neve revirados, as frutas nas fruteiras cobertas de moscas, as garrafas de vinho espumante, as latas de cerveja, os copos de uísque pela metade. Porém nossa mãe não estava faminta, nossa mãe sequer desviou o olhar para alguns de nós, os mais pequenos, que acordavam, choramingando, chamando por ela, sem entender o que acontecia, nossa mãe não expulsou os convidados, não repreendeu os nossos irmãos pelo desrespeito, pela impertinência, por aquela quase orgia, justo na noite de natal. Nossa mãe apenas ergueu a mão, a palma voltada para todos os olhares, gesto que pela primeira vez não deixava dúvida, nem de até-logo nem esperem-um-minutinho, gesto dessa vez imperativo de silêncios, que congelava de expectativa o coração de todos, que dissipava os efeitos do vinho, do uísque, da cerveja, que cortava a nuvem de fumaça dos cigarros ao meio, gesto que por si só repreendia os nossos irmãos mais velhos, expulsava os convivas, e somente não levava a nós, os mais pequenos, um a um para nossas camas e berços porque possuía apenas o poder, a energia, o significado, mas não passava de um gesto, e por causa do silêncio imposto nós adivinhamos, antes de ouvir o som familiar, quase zumbido, o rumorejar monocórdio de frequência baixa, quase inaudível, quase percebido somente por sua vibração, vinda da terra, o som que os mortos-vivos às vezes faziam enquanto esperavam minha mãe distribuir-lhes as prendas, sob a neblina ou a garoa fina, no jardim, entre o curral e a varanda da casa, nas manhãs de natal.

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