(...)
Os mortos-vivos chegavam durante a madrugada da véspera do natal. Acotovelavam-se em silêncio, ou, no máximo em um murmúrio grave, monocórdio, abaixo do tom, quase um zumbido, sob a neblina ou sob a garoa fria, na parte da frente da casa, esperando, passivos, entre a varanda e os currais. Não fosse pelas roupas fora de moda, pela palidez esquálida dos rostos, pelas mãos muito finas sempre dependuradas ou as olheiras quase negras eles podiam ser facilmente confundidos com peregrinos, visitas ou parentes distantes que há muito tempo não víamos. Nós, os mais pequenos, éramos terminantemente proibidos de nos levantar da cama, mas mesmo assim nos espremíamos no vidro da janela do quarto para ver nossa mãe, vestida com a parca branca com capucho, e calçada com os tamanquinhos holandeses que nosso pai a presenteara antes de se casarem - para ver nossa mãe distribuindo a cada um dos mortos-vivos uma lembrança embrulhada em papel laminado, um pacote de fumo, uma chave-de-fenda, um canivete vagabundo para os homens, um jogo de agulhas, retroses coloridos, batons pela metade para as mulheres, e pequenos bonecos modelados em massa de biscuí para as crianças, independente se meninos ou meninas. Em seguida à cada presente entregue nossa mãe apertava de leve, quase sem tocar, as mãos dos homens, beijava quase sem tocar as faces das mulheres e afundava os dedos quase sem tocar os cabelos embarrados das crianças. Esse ritual durava toda a manhã e às vezes parte da tarde e só era interrompido por não mais que uma hora, por volta do meio-dia, quando a empregada avisava, da varanda, que o almoço estava servido. Então, do terceiro degrau ela virava-se e acenava aos mortos-vivos, uma mistura de adeusinho e um-momentinho, e os mortos-vivos ficavam lá, parados, os pés firmemente apoiados na lama misturada com esterco e grama pisoteada, oscilando de leve, sem nenhum esboço de cansaço, pois, como é sabido, os mortos-vivos nunca se cansam, os mortos-vivos não sentem fome, os mortos-vivos possuem a eternidade.
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