terça-feira, 27 de dezembro de 2011

história de natal (8)

(...)
O gesto de nossa mãe, no meio da sala, o braço direito estendido, mão à altura dos ombros, nem adeus nem aguardem-um-momentinho, por si só, sem palavra que o reforçasse, imperativo, interrompeu ao meio a orgia, suspendeu os movimentos, os chistes, os trocadilhos, as risotas, cortou a nuvem de fumaça de cigarros, a mão espalmada de nossa mãe, voltada para cada cara, pronta para esbofetear cada um dos nossos irmãos mais velhos, para expulsar, apontando a porta, cada um dos convidados, os amigos, as namoradas, as moças e moços de reputação duvidosa, para nos afagar, a nós, os mais pequenos, as nossas barrigas congestionadas, para calcular a febre nas nossas testas, nada disso. Além de impor o silêncio o gesto de nossa mãe abriu um corredor entre os convivas que permaneciam de pé, uma passagem, um túnel afunilado, desde o vértice, no centro da palma da mão erguida de nossa mãe até o escuro emoldurado da porta da entrada aberta, por onde chegou, e pela primeira vez percebemos, o som grave, amplificado, monocórdio, abaixo do tom, o quase zumbido, telúrico, dos mortos-vivos no jardim, entre o curral e a varanda. Os olhares voltaram-se para a porta, todos, quase ao mesmo tempo, e viram, no escuro da noite emoldurado pelo umbral, em outro tom de escuro, mais denso, opaco, talvez mais aveludado, o vulto, a silhueta avançando, hesitante, lenta, primeiro a mão, como se forçasse para romper a membrana elástica que dividia o escuro da noite de fora da claridade amarela, esfumada, matizada das cores coloridas do pisca-pisca da árvore de natal e do aparelho televisor dentro da casa, como se titubeasse, os dedos procurando uma maçaneta invisível, inexistente, para abrir a porta já aberta, como se pedisse licença para entrar, primeiro o braço, depois o ombro, a ponta do nariz, o queixo proeminente, a aba do chapéu avançando, rompendo a película que dividia o escuro do claro, ou o claro do escuro, do ponto de vista de todos os olhares, a atenção dos espectadores suspensa, os contornos, as feições, o jeito de nosso pai que atravessava o túnel, através dos convidados e das convidadas, e dos nossos irmãos mais velhos, e voltava para casa depois de tantos anos desaparecido.

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