sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

reescrevendo o passado (ode assimétrica)

Passei toda a tarde trabalhando um texto que me acompanha há mais de 30 anos, nunca concluído. Ou melhor, concluido, sim. Em etapas, períodos de vida específicos. Superado e vivido o período, o texto, como se fosse vivo, passava a exigir ajustes, reformulações de pensamento que se adequassem ao novo período iniciado. Perdi a conta das versões e revisões definitivas. Por sorte ou azar eu perdi as versões intermediárias, entre a original e a atual.

Trata-se de um poema. Longo. Escrito entre o final dos anos 70 e o comecinho dos anos 80. Até ganhou um concurso de poesia. Foi publicado no jornal do Departamento de Letras da universidade. Ficou guardado durante anos. Ressurgiu algumas vezes, inteiro ou aos pedaços, em concursos perdidos ou antologias que ninguém leu. Voltou para a gaveta. Finalmente foi publicado (e modificado) logo nas primeiras postagens deste blog.

Era o final da adolescência tardia. Eu vivia em uma espécie de limbo mental e emocional, esquizofrenia branda e inofensiva. Estava na universidade. Integrava um grupo de teatro. Era virgem. Tímido. Estava apaixonado. Pela primeira vez. Paixão platônica. Daquelas de se jogar da torre, cortar os pulsos ou beber formicida com refrigerante.

Convidei a pessoa amada (tecnicamente o melhor amigo) para visitarmos outro amigo, poeta, que se mudara para o Maranhão. A viagem foi intensa. Dias e noites insones, enlouquecidos, vivendo, sentindo, experenciando. Eu escrevia cadernos e cadernos, desenhava blocos e blocos de papel canson A3. Um dia tomei coragem: enchi a cara de cachaça misturada com guaraná Jesus, e me declarei. O cara era hetero, enrustido, babaca, fazia charme, me esnobava, ou, sei lá, simplesmente não estava a fim. Não rolou.

Como diz o lugar-comum, só o tempo para cicatrizar as feridas. Depois de uns 3 anos (!) a paixão padeceu, foi crucificada, morta e sepultada. Os cadernos-testemunhos foram queimados em um surto posterior. Os desenhos sobreviveram e hoje estão protegidos em pastas, no quartinho de depósito.

Sobreviveu também o poema. Uma ode. Inspirada no Poema Sujo (Ferreira Gullar), que na época eu sabia quase todo decorado.

No blog, a ode mudou várias vezes. As construções iam tornando-se mais elaboradas. O vocabulário mais caprichado. As imagens da paixão e do tesão adolescente permaneciam, pulsantes ainda, porém mais depuradas, pretensiosamente requintadas, sofisticadas. Era ainda bruto, porém reescrito sob o crivo da maturidade e da consciência dos fatos e dos motivos. O que se distiguia era outra paixão, mais ampla e intensa, pela vida vivida na cidade de São Luís.

Estava escuro (às 20h30 no horário de verão) quando eu desempaquei a última parte. Manca, disforme, incompatível, assimétrica, aquém das versões anteriores. Me perdi no final. Perdi o sentido daquilo. Conclusão? Fechamento? nenhuns. Afinal, São Luís está irreconhecível hoje. A praia deserta do Calhau virou bairro nobre. O casario azulejado desmoronando. A pobreza expandiu-se, cercou a cidade. O objeto da paixão virou executivo de uma empresa de mineração na África do Sul. Só o amigo poeta continua poeta.

Gastei tanto tempo e energia ao reviver e recuperar aquilo tudo. Eu estava exausto. E faminto. Desliguei o computador. Juntei todos os restos de comida da geladeira: arroz com açafrão, feijão, salada de batata com cenoura, mini-beterrabas pré-cozidas, um tomate, tirada a parte podre e carne moída. Juntei 2 ovos, molho barbecue, farinha, azeite e pimenta. Levei ao fogo mexendo sempre. E me empanturrei. Até quase explodir. Até não caber mais o poema.

(clique aqui para ler a Ode Assimétrica)

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