O tradutor de As vidas dos homens ilustres, de Plutarco, enumera as vantagens de conhecer o passado histórico, seja pela leitura dos relatos fidedignos de fatos, seja pelo prazer de escutar viajantes que retornam de uma longínqua viagem, seja ouvindo a conversa de um sábio ou as histórias contadas pelos mais velhos, de cujas bocas surgem um fluxo de linguagem mais doce do que o mel.
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Plutarco era um historiador (além de ensaísta e filósofo). Viveu em Roma, no início da era cristã. Escreveu centenas de livros. Dentre eles, os Homens Ilustres. Ele prezava pela veracidade dos fatos. Traçou paralelos entre as vidas de 46 personalidades do mundo antigo, sempre um grego e outro romano. Uma obra de fôlego.
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Um pouco de mitologia:
Havia na ilha de Creta um ser, metade homem, metade touro, chamado Minotauro. Sua mãe era a rainha Pasífae, esposa do rei Minos. Pasífae apaixonou-se por um touro maravilhoso, que Posídon (deus dos mares) presenteou a Minos. Pasífae pediu a Dédalo, o arquiteto da corte, que constuísse uma vaca de madeira, na qual pudesse entrar e se posicionar de tal forma que o touro a possuísse. Dessa paixão nasceu o Minotauro.
O mesmo Dédalo foi encarregado pelo rei Minos de construir um labirinto (espécie de prisão, cheia de corredores, de onde ninguém conseguia encontrar a saída) onde pudesse encerrar o filho monstruoso de Pasífae. Minos (que tinha vencido uma guerra contra Atenas) exigia dos atenienses o tributo anual de 12 jovens (6 rapazes e 6 moças) que serviriam de alimento ao Minotauro.
Teseu era filho do rei de Atenas. Era um herói, como Hércules. Juntou-se aos jovens atenienses que seguiam para Creta, com o intuito de pôr fim ao castigo imposto por Minos.
Ariadne, filha de Minos, apaixonou-se por Teseu. Deu-lhe um novelo de lã que o ajudaria a marcar o caminho e encontrar a saída do labirinto. Teseu matou o minotauro, libertou os jovens atenienses e sequestrou Ariadne, para logo em seguida abandoná-la (não se sabe o motivo, ou a pedido de Dionisos) grávida, em uma praia da ilha de Naxos.
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Plutarco ficou tentado. Queria iniciar a obra grandiosa com a biografia de Rômulo, pretenso fundador de Roma. Como espelho grego, havia o mitológico Teseu. Arriscou. Tentou espremer o mito na caixinha redutora da ciência.
Para Plutarco, deuses, monstros, vaca de madeira, labirinto - era tudo balela. Iria relatar fatos duvidosos. Por isso justificou-se, utilizando uma linda imagem: comparou aqueles fatos obscuros,
anteriores à História, às regiões desconhecidas que eram deixadas em
branco nos mapas desenhados pelos cartógrafos. Regiões essas onde havia senão profundos areais sem água, cheios de animais venenosos.
Com a ajuda de outros historiadores menos fabulosos, que prezavam a veracidade dos fatos, Plutarco contou a vida de Teseu no limite entre a realidade conhecida e a ficção estranha, arbitrariamente delimitada pelos poetas, que inventavam fábulas monstruosas onde não há certeza nem qualquer aparência de verdade.
O labirinto não passava de uma cadeia na qual não havia outro mal senão o de que não podiam dali sair os que ali eram encerrados. Ao invés de janta do monstro, os jovens atenienses seriam dados como escravos aos vencedores de jogos atléticos instituídos por Minos.
O Minotauro nunca teria existido. O primeiro vencedor dos jogos (e de vários jogos subsequentes) era um general grosseiro, revesso e desgracioso de natura chamado Tauro. Que era amante da rainha Pasífae. Por esse motivo Minos queria se ver livre do general Tauro, custasse o que custasse. Assim, fez com que Teseu o enfrentasse nos jogos e o matasse. Como prêmio pela vitória, Teseu e os jovens atenienses foram libertados e Atenas foi liberada de continuar pagando o tributo anual a Creta.
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Plutarco encontrou uma boa saída. Não deu o braço a torcer aos poetas fantasiosos, cuja criatividade extrapolava a realidade com seus deuses, touros mágicos, monstros e personagens ficcionais. Contou uma história lógica, vivida por personagens humanos normais. Uma história baseada em fatos pretensamente reais. Uma História plausível, com "H" maiúsculo.
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A versão certinha contada por Plutarco é boa. Tentativa de dar uma cara séria a um fato que pertence aos poetas, aos ficcionistas, aos fantasistas, àqueles que habitam os areais desconhecidos, repletos de animais exóticos e peçonhentos.
Eu sou um desses. Ainda prefiro encontrar a saída desenrolando o novelo de lã. Correr o risco, o sobressalto de imaginar o Minotauro em cada canto, no fundo de cada beco sem saída. Ouvir seu berro, sentir sua fúria aproximando-se e depois se afastando. A possibilidade dupla de mortalmente o ferir ou de ser ferido por ele - a acreditar que era apenas uma fofoca sem-graça, diz-que-diz de alcoviteiros contada por escrivões burocratas e carimbada e autenticada por tabeliões excessivamente ciosos dos deveres. E que sobreviveu somente nos arquivos empoeirados, cujas gavetas emperradas não foram abertas desde os tempos de Plutarco.
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