quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

pequenos assassinatos (*)


Passo o dia inteiro na rua.

Chego em casa à noite. O cão só falta ter um piripaque de felicidade. Nem sinal da gata.

Fervo água para o chá. Como os restos da geladeira com pão de abóbora. Tomo banho. Procuro a gata no quintal. Nem sombra. Vou trabalhar.

Cena 1:

O chão do escritório forrado de algo que não consegui identificar. Penugens e penas cinzentas. Muitas. Sobre a cadeira a cena hitchcockiana: um pardal. Depenado e estripado, vísceras expostas, ainda mole. Na prateleira mais alta, sobre os Caldas Aulete, cintilam os olhos amarelos, redondos da gata. Observando a minha reação.

Retribuo o olhar. Pura censura e reprovação. Enquanto eu recolho o cadáver e as provas do crime ela desaparece.

Cena 2:

Silêncio sepulcral (adoro esse clichê) na casa. Só rompido pelo telecoteco do teclado. Meia hora depois vou buscar água. Quem eu vejo? a gata. Onde? na cozinha. Fazendo o quê? torturando uma microlagartixa. Já sem rabo e perninhas.

Travessura tem limite. Desconsidero tudo o que sei sobre compaixão, zoologia e psicologia dos animais domésticos. Incorporo o pior dos pedagogos. Dou um berro. Só não acerto a vassourada porque ela é mais esperta e se escafede pela área de serviço.

Cena 3:

Pra lá das 3 da manhã. Vou dormir. A gata na cama, miúda, linda, pura inocência e fofura, ressonando aninhada sobre o cobertor. Deito-me de lado, sem interromper-lhe os sonhos de futuros assassinatos.


(*) mesmo título do filme de Alan Arkin

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