terça-feira, 22 de março de 2011

Mário

Ele sofria em silêncio. Ou dormia. Nós pouco nos falávamos. Eu me ocupava com a dedicação, os cuidados, o travesseiro, a inclinação da cama, os curativos nas escoriações. Para escapar de olhá-lho nos olhos. De pronunciar palavras que revelassem o medo. Ou o alívio de saber que seriam os últimos momentos juntos. Era como uma raiva, contida, indistinta, raiva da doença, do inevitável. Como se ele fosse culpado. Eu estava exausto. Ele percebeu, sim. Porém já se desligava. Nada mais lhe importava que não fosse a própria dor. Que os remédios não aplacavam. Ele se continha. Mesmo nos últimos momentos não queria incomodar. Nada havia a fazer. A não ser esperar. Esperar o dia nascer. Esperar a vinda do médico. Esperar a enfermeira encontrar a veia. Esperar a Morte levantar-se da cabeceira dele. (Pausa). Enquanto o câncer implacável o corroía por dentro. Nas horas intermináveis de vigília. No calor do quarto. Entre as visitas do médico, das enfermeiras. No intervalo entre uma gota e outra pingando no tubo de soro. Como um sonâmbulo eu transcrevia, riscava, alterava, reescrevia frases impregnadas de agonia. E de Morte. Morte sempre. Morte vestida de vida. De paixão. De sensualidade. Antecipação da descida ao Hades? Um videoclipe interminável de música acelerada e sobreposição vertiginosa de imagens, palavras e cores, legendas desnecessárias no rodapé da tela. Simultaneidade irônica. O texto expandia-se. Na proporção em que as células devastadoras devoravam-no. Desmaterializavam-no. De dentro para fora. (Pausa). Eu queria ler para ele o que era nosso. (Pausa). Você?

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