quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O garoto, a chuva e o cara do Land Rover



Eu disse pra mãe que eu não queria ir. Que preferia ficar sozinho. Eu detesto a serra. Ainda mais chovendo. Ela nem me olhou na cara. Quem você acha que é pra querer alguma coisa, sua bichinha? Que eu tirasse o cavalinho da chuva. Que eu só tinha 17. Que eu não ia ficar sozinho no apartamento dando pra deus e o mundo sem camisinha. Que eu tratasse de arrumar a mochila rapidinho. E ai de mim se eu encostasse um dedo na Bela de novo. A mãe sabe ser escrota. O jeito foi ir.
Séculos no engarrafamento na subida da serra. O namorado da Bela me espremendo. No banco de trás. Sem abrir o vidro. O cara apertando a coxa na minha. O bração no meu ombro. Cheiro de desodorante vagabundo. Vontade de descer e ir à pé.
Pedi pra mãe ligar o rádio. Pro tempo passar. Rezando pra dar bastante notícia da chuva. Pra eles se convencerem que era melhor voltar. A mãe cantando junto com a música. O erro! Ainda bem que eu trouxe o notebook. 
Tomara que pelo menos tenha uma festinha legal. Um DJ que não toque música anos 80. Só com gente bonita. Sem aquele bando de velho babão se jogando na pista. Bando de velho safado se fingindo de legal pra comer os garotos da idade dos filhos deles.
Se eu conseguisse, eu vivia sem sexo. De boa. A gente sempre espera ser maravilhoso. Encontrar o cara certo. Tipo príncipe. Mas 99,99% é sapo. Tem até uns coroas gostosos. Até legais. Mas depois que gozam esquecem que a gente existe. Sempre é mais ou menos igual.
Quem sabe aparece um que eu ame de verdade. Que não seja possessivo. O problema é que eles gostam de ficar em casa. Se me amar, tudo bem. Eu fico. Com jeito eles fazem o que a gente tá a fim.
O pai tá de saco cheio. Pelo jeito queria ter ficado em casa. Tomando uisquinho. Fumando maconha escondido. Se pudesse ele tinha despachado a gente. E ficado com uma garota de programa. Ou um garoto, sei lá. O pai não deve ser tão diferente dos coroas da internet. 
O mundo vai se acabar em chuva. O carro derrapou na estradinha de terra até a pousada. A mãe me obrigou a ajudar o namorado da Bela a descarregar o portamalas. Debaixo do maior toró. Eu vou dormir no colchonete extra. Num quarto com a Bela e o namorado. 
Não dá pra passear na mata. Nem na cachoeira. Nem ficar na varanda. A internet tá lentérrima. Se desconectar eu me mato. Imagina o inferno. O fim de semana inteiro. Enfurnado na pousada jogando baralho. O pai enchendo a cara de cerveja. A mãe enchendo a paciência. Sai da frente dessa porra de  internet e vai jogar com a Bela e o namorado. Eu fingindo não ouvir a Bela na cama do namorado de madrugada. 
O namorado da Bela perguntou se eu ia sair assim. Assim como? Com esse toró. Eu ia sim. Encontrar um cara do site. Também passando o feriado na serra. 35 anos. Ainda bem que eu trouxe a capa de chuva do Flávio. De Nova York. A Bela foi contar pra mãe. Mandei ela pra aquele lugar.
Foi complicado descer. A enxurrada fazia uma cachoeira ao lado da estrada. Em baixo o rio quase cobrindo a ponte. 
Fiquei debaixo de uma marquise até o cara do Land Rover aparecer. Legal ele. Bonitão. Sorriso lindo. Faz rafting e rapel. E pega onda. Não me deixou fumar no carro. Perguntou se eu era menor. Menti: 19. Não deu outra. Colocou a mão na minha perna. Chamou pra tomar uma cerveja na pousada dele. 
Rolou. Foi demais. Depois a gente viu notícia da enchente na tevê. Dava em todos os canais. Já tava tarde. O cara me levou pra pousada. Não deu pra passar. A gente teve que voltar porque a ponte já tava coberta de água. Droga. Acho que me meti num rolo. 
O jeito era avisar a mãe. Disse que ia dormir na casa de um amigo. Que amigo? da internet. Ouvi a mãe gritando pro pai vir me buscar.  Eu disse que ele não ia conseguir passar na ponte. Ela não acreditou. 
Passou mais de uma hora e a mãe me ligou. Pra saber porque a gente tava demorando. Porque o pai não atendia o celular. 
Antes da meia-noite a mãe ligou de novo. O pai não tinha voltado. A pousada tava ilhada. Ninguém saía e ninguém chegava. Disse se cuida, meu filho. Ela devia estar mesmo assustada. Pra me chamar de meu filho. 
O cara tava preocupado. Achando estranho aquela chuva toda. A gente procurou na internet. Tinha um aviso de risco deslizamento na Defesa Civil, bombeiros, sei lá. Complicado. Pra mim era perfeito. Só pensava que ia dormir a noite inteira com o cara dos meus sonhos.
De madrugada o cara me acordou. Tou voltando pro Rio. Teve deslizamento de morro. A ponte cedeu. O rio inundou a periferia. Arriscado ficar. Se quiser te dou uma carona.
Liguei pra mãe. Depois pro pai. Fora de área. O da Bela também. Eu não tinha o número do namorado dela. Senti um pouco de medo. Paciência. Nada a fazer. Topei voltar com o cara. Na estrada eu tentaria de novo.
A gente chegou já amanhecendo. Barreira caída na estrada. Sinal nenhum da mãe. O ap do cara é legal. Santa Teresa. Ligou a tevê. Só noticiário da chuva. 
Eu nem prestei atenção. Tava cansado. Cochilei abraçado com o cara.
Mas aí começou o horror. A lama descendo do morro. Arrastando tudo. Carro, casa, vaca, cachorro na enxurrada. Helicóptero. Bombeiro. Gente soterrada. Gente isolada. Gente desabrigada. Gente morta. Terrível. Nem dava pra acreditar. O lugar onde a gente tava. há pouco tempo atrás. O lugar onde a mãe e o pai e a Bela ficaram.
Me deu um desespero. Nada do celular atender. O cara me levou em casa. Liguei pra tia. Também sem notícia. Perguntei se podia ir pra lá. Disse pra eu me acalmar. Que era melhor esperar. Que se desse passava lá em casa mais tarde.
Só podia mesmo ser irmã da mãe. Me dispensou. Pra proteger o priminho de mim. Evitar contato. Contágio. Numa hora dessas? Bando de gente hipócrita. 
Fiquei conversando com o Flávio, que tava em Recife. Contei pra ele. Ele também viu na televisão. Falei do cara do Land Rover. Que eu tava apaixonado. O Flávio disse que eu devia ligar pra ele. 
Pô, cara, eu tou aqui agoniado. Sozinho. Sem saber o que fazer. O cara perguntou se tinha comida em casa. Que eu me acalmasse. Que minha família devia estar bem. Que a torre do celular devia ter caído. Que eu devia mesmo ficar em casa esperando notícia. Que mais cedo ou mais tarde eles apareceriam. Que ele ia procurar saber notícia com um amigo do corpo de bombeiros. Que se eu quisesse, trazia um lanche. 
Eu quis. Sanduíche, batata frita, catchup, coca-cola. Pedi que viesse logo. Aí eu esperei. Sentado no chão da cozinha. Pronto pra atender no primeiro toque do interfone. 
Acho que a mãe tem razão. Eu sou mesmo bem doido. Em vez de ficar triste, pensei uma porção de maluquice. O notebook debaixo da lama. O pai e a mãe e a Bela mortos. Como ia ser a minha vida? Eu herdava o ap. E se tivesse que identificar os corpos? Será que eu ia morar com a tia? Nem morto. Com o cara do Land Rover. 
Quando ele me abraçou me deu um negócio esquisito. Chorei. Descontrolado. De soluçar.  Igual criança. O cara continuou me abraçando. Chorei de molhar a camisa dele. Queria derreter. Entrar dentro dele. Que ele me carregasse no colo. Esquecer a droga da chuva, da tragédia, da catástrofe. Queria só que ele me abraçasse. Pra sempre.

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