Era uma vez, no tempo em que os bichos falavam, um peru. Tinha chegado ao terreiro adolescente. Seu único amigo na época era o patinho feio. O gavião pegou o patinho. O patinho gostou. Foram viver juntos. Deixando o peru sozinho. Envelhecendo no meio da galinhada.
Canalizou a solidão para os estudos. Formou-se aos 19. Aos 20, concursado. Aos 30, abandonou o mestrado. Desde os 40, frequentava a sauna da fazenda duas vezes ao mês. Aos 53 aposentava-se, secretário do burro, gerente-chefe do celeiro.
Aconteceu na festa de despedida. Antes dos salgadinhos, dos refrigerantes, da torta e das latas de cerveja guardadas na geladeira da copa, para serem liberadas após o encerramento do expediente.
Enquanto o burro discursava, o peru notou o estagiário. Penugem arrepiada. Cara de bebê safadinho. O peru sentiu vontade de pegar o gansinho no colo, levar pra casa, colocar pra dormir, dar de mamar, fazer miojo de noite, andar de roda gigante no parque, tão fofo.
Como assim? sentimento paterno? Qual nada. Era a fúria contida do amor prestes a explodir. O peru queria mesmo era afogar o gansinho, pobreza de trocadilho. Perdeu o fio da meada da fala do burro. Só despertou do devaneio com o coro da bicharada exigindo: dis-cur-soo!
O peru emocionou-se. Duas lágrimas. Depois abraços, cumprimentos, lista com telefones, e-mails dos colegas, não se esqueça da gente! Presente: pijama! Piada. Não era. O peru era fino. Que chique! era isso mesmo que eu queria. Sem tirar os olhos do gansinho. Ou pegava o estagiário ou cortava os pulsos ali mesmo.
18 horas, cerveja liberada. O peru tomou o primeiro copo. O segundo. Nem beliscou o sanduíche de metro. No terceiro, alegrinho, passou a beber na lata. Achava sexy o barulho de abrir – ptssssssh! – imitou, meio gay, seguido de gargalhada que os colegas nunca tinham ouvido.
O estagiário dedilhava o violão. Quem sabe eu ainda sou uma garotinha. Em homenagem ao aposentado. O peru cego de desejo. Queria avançar, perigosamente, animado pela cerveja, estômago vazio.
Ofereceu o primeiro pedaço da Marta Rocha adivinhem a quem? Ao gansinho. Os colegas exclamaram, oh!, misto de reprovação e de quem queria ver o circo pegar fogo. O peru foi rápido: para saudar o sangue mais novo. O futuro da repartição. Aplausos.
O peru esperou o melhor momento e crau! puxou papo com o gansinho. Uma cantada ali mesmo, na frente de todo mundo, sentado na mesa do chefe. Que se danassem, era o último dia. Mas foi tão poético que o gansinho não entendeu. Ou fingiu não entender. Aquele peru bêbado com idade para ser pai, quiçá avô dele.
Não precisa dizer que o peru foi pra casa sozinho. Bêbado como um peru de véspera. Deitou-se sem tomar banho. Nem tirou as meias. Sonhou com o gansinho-estagiário.
No dia seguinte, no primeiro dia da vida nova de aposentado, o peru acordou tarde. Nem sentiu a dor de cabeça, o gosto de guarda-chuva, a sede da ressaca. Foi direto na lista dos colegas, junto com o presente, o pijama.
Enlouquecido de ansiedade, o peru ligou para o gansinho. Caiu na caixa postal. Deixou recado: oi, preciso falar com você, me liga quando puder.
O peru esperou até à noite. O gansinho ligou? Nem eu. Então tormenta era aquilo? Seria tormenta o sentimento que o peru tinha evitado tanto tempo? Desde o tempo do patinho feio, na adolescência? O peru sentiu inveja do patinho feio que não esperou. Que entregou-se de corpo e alma ao sentir na cara a primeira gota da chuva, o primeiro impulso do amor.
Então o peru rompeu com a reserva, a discrição, o senso de ridículo, o medo de rejeição, etc etc etc. Ligou de novo.
O gansinho atendeu. Conversaram. Primeiro sem muito assunto, a ressaca, a festa, o primeiro dia sem trabalhar. Pô, sempre te achei um cara legal, o gansinho disse. Sinal para o peru avançar. Tanto tempo perdido, só ter reparado no gansinho no último dia de trabalho, hehe. O papo engatilhou. Combinaram assistir a um filme. Tomar açaí no shopping. Sair pra dançar qualquer dia desses.
Era um começo.
Depois de desligar, o peru aposentado viveu feliz para sempre.
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