(...)
No instante em que a aba do chapéu de nosso pai tocou a palma da mão de nossa mãe, o halo, o cone se desfez. Desmanchou-se também o sentido, a intenção do gesto, amoleceram os dedos, a musculatura, a mão, e o braço de nossa mãe tombou ao longo do corpo. Justo nesse momento, por coincidência ou não, as luzes da sala oscilaram, falharam, piscaram e se apagaram. Assim, ao invés do natural relaxamento de todos, acompanhado do desfazimento do túnel-cone e do gesto de nossa mãe, e terminada a travessia de nosso pai, ao invés de terminar, a tensão prolongou-se, pois o coincidente piscar das luzes foi um sinal, um alerta de que mais acontecimentos viriam, ou explicações, o desfecho previsível. O piscar das luzes estendeu a tensão, impediu de se descongelarem os gestos dos convidados, as cinzas dos cigarros serem batidas nos cinzeiros, as mãos descansarem as taças na mesa, os últimos goles descerem pela garganta, os caroços de azeitona serem jogados pela janela, os guardanapos limparem os cantos das bocas. Nós já estávamos acostumados, a corrente elétrica oscilava, por exemplo, quando mais que dois de nossos irmãos mais velhos demoravam-se ao chuveiro, quando se ligava mais de uma máquina ao mesmo tempo, a ordenhadeira, o descaroçador, a bomba hidráulica, etcétera, a máquina velha do gerador sobrecarregava-se, e era só o tempo das pupilas se acostumarem com o escuro, se dilatarem, para que um de nossos irmãos mais velhos se dirigisse à casa das máquinas e religasse o gerador, às vezes nem era necessário levar a lanterna, tão acostumados estávamos, sempre, assim o pique de luz não deveria ter sido surpresa, afinal todas as luzes da casa estavam acesas, o pisca-pisca da árvore de natal e das guirlandas, o aparelho televisor e o de som, o refrigerador na temperatura máxima de congelamento, mas justo na noite de natal, justo na noite em que nosso pai voltava, depois de tanto tempo desaparecido, a queda de energia nos tomou desprevenidos, porque o escuro se desencadeou o depois, as consequências foram definitivas.
sábado, 31 de dezembro de 2011
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
história de natal (9)
(...)
Nem se quiséssemos nós, os mais pequenos, naquela noite de natal em que os mortos-vivos voltaram, naquela última noite de natal que passaríamos juntos, nem se quiséssemos nós saberíamos, ou imaginaríamos, ou resgataríamos das nossas lembranças recentes, nossa memória imediata, recoberta não com os escombros, os blocos de granito, o cascalho, o entulho dos longos dias da memória dos nossos irmãos mais velhos, mas com uma camada fina de pó, perceptível só quando se passava a ponta do indicador sobre a superfície lisa, vidro polido, acrílico, plástico ainda sem arranhão, fenda ou cicatriz, nós não poderíamos resgatar de nossa memória, reconhecer na silhueta forçando a membrana do escuro, ou depois de rompida, atravessando o corredor aberto entre os nossos irmãos mais velhos e os convidados, o túnel-cone cuja base era a porta da sala e o vértice a palma da mão erguida de nossa mãe, nós não reconheceríamos, na figura pálida, mãos esquálidas, roupa fora de moda nosso pai que partira há muito, quando mal nos haviam retirado os cueiros, as fraldas, quando ainda mamávamos nos peitos de nossa mãe, quando ainda engatinhávamos, catarrentos, nus, pelas tábuas enceradas do chão da sala, ou nos deslocávamos nos andadores, esbarrando nos móveis, atropelando os cães a dormir nos tapetes, derrubando os enfeites da mesa de centro, quando mal balbuciávamos as primeiras sílabas, ensinadas e insistidas por ele, nosso pai, à cabeceira do nosso berço, pa-pá, e teimávamos, ma-mã, talvez pela dificuldade das oclusivas, opostas às facílimas nasais, ou quem sabe por pura teimosia bilabial, ou ainda por sabe-se lá quais bloqueios, ou por qualquer razão nosso pai partira e não havia resquício consciente de sua presença na nossa memória, a dos mais pequenos, e, portanto, não tínhamos obrigação de reconhecê-lo, ao contrário dos nossos irmãos mais velhos, que pressentiram, mesmo antes, quando o túnel cônico se formara, quando o vulto ainda não rompera a membrana do escuro da base do cone e avançava na direção do vértice imaginado, na palma da mão de nossa mãe, mesmo pressentido não houve como evitar o espanto dos nossos irmãos mais velhos, disfarçar o constrangimento desnecessário, porém doloroso da lembrança, dor que somente aos nossos irmãos mais velhos doía, osso fraturado, cárie, abscesso, dor ressuscitada e reencarnada em nosso pai, atravessando, lento, a sala, olhando de um lado e outro, também reconhecendo, acenando, cumprimentando ora com os olhos, ora pouco erguendo o dedo indicador da mão esquálida, pendente, ora com um movimento mínimo dos lábios, esgar à guisa de sorriso, reconhecendo entre o grupo formado pelos convidados e por nossos irmãos mais velhos os nomes, as feições, os caráteres de cada um dos filhos dele, nosso pai, ou, melhor, dos filhos que ele se lembrava, pois também nós, os mais pequenos, o éramos, filhos, todos, agrupados do lado direito, do lado esquerdo, na base do mesmo círculo que se formava e se fechava na mão espalmada erguida de nossa mãe.
Nem se quiséssemos nós, os mais pequenos, naquela noite de natal em que os mortos-vivos voltaram, naquela última noite de natal que passaríamos juntos, nem se quiséssemos nós saberíamos, ou imaginaríamos, ou resgataríamos das nossas lembranças recentes, nossa memória imediata, recoberta não com os escombros, os blocos de granito, o cascalho, o entulho dos longos dias da memória dos nossos irmãos mais velhos, mas com uma camada fina de pó, perceptível só quando se passava a ponta do indicador sobre a superfície lisa, vidro polido, acrílico, plástico ainda sem arranhão, fenda ou cicatriz, nós não poderíamos resgatar de nossa memória, reconhecer na silhueta forçando a membrana do escuro, ou depois de rompida, atravessando o corredor aberto entre os nossos irmãos mais velhos e os convidados, o túnel-cone cuja base era a porta da sala e o vértice a palma da mão erguida de nossa mãe, nós não reconheceríamos, na figura pálida, mãos esquálidas, roupa fora de moda nosso pai que partira há muito, quando mal nos haviam retirado os cueiros, as fraldas, quando ainda mamávamos nos peitos de nossa mãe, quando ainda engatinhávamos, catarrentos, nus, pelas tábuas enceradas do chão da sala, ou nos deslocávamos nos andadores, esbarrando nos móveis, atropelando os cães a dormir nos tapetes, derrubando os enfeites da mesa de centro, quando mal balbuciávamos as primeiras sílabas, ensinadas e insistidas por ele, nosso pai, à cabeceira do nosso berço, pa-pá, e teimávamos, ma-mã, talvez pela dificuldade das oclusivas, opostas às facílimas nasais, ou quem sabe por pura teimosia bilabial, ou ainda por sabe-se lá quais bloqueios, ou por qualquer razão nosso pai partira e não havia resquício consciente de sua presença na nossa memória, a dos mais pequenos, e, portanto, não tínhamos obrigação de reconhecê-lo, ao contrário dos nossos irmãos mais velhos, que pressentiram, mesmo antes, quando o túnel cônico se formara, quando o vulto ainda não rompera a membrana do escuro da base do cone e avançava na direção do vértice imaginado, na palma da mão de nossa mãe, mesmo pressentido não houve como evitar o espanto dos nossos irmãos mais velhos, disfarçar o constrangimento desnecessário, porém doloroso da lembrança, dor que somente aos nossos irmãos mais velhos doía, osso fraturado, cárie, abscesso, dor ressuscitada e reencarnada em nosso pai, atravessando, lento, a sala, olhando de um lado e outro, também reconhecendo, acenando, cumprimentando ora com os olhos, ora pouco erguendo o dedo indicador da mão esquálida, pendente, ora com um movimento mínimo dos lábios, esgar à guisa de sorriso, reconhecendo entre o grupo formado pelos convidados e por nossos irmãos mais velhos os nomes, as feições, os caráteres de cada um dos filhos dele, nosso pai, ou, melhor, dos filhos que ele se lembrava, pois também nós, os mais pequenos, o éramos, filhos, todos, agrupados do lado direito, do lado esquerdo, na base do mesmo círculo que se formava e se fechava na mão espalmada erguida de nossa mãe.
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
história de natal (8)
(...)
O gesto de nossa mãe, no meio da sala, o braço direito estendido, mão à altura dos ombros, nem adeus nem aguardem-um-momentinho, por si só, sem palavra que o reforçasse, imperativo, interrompeu ao meio a orgia, suspendeu os movimentos, os chistes, os trocadilhos, as risotas, cortou a nuvem de fumaça de cigarros, a mão espalmada de nossa mãe, voltada para cada cara, pronta para esbofetear cada um dos nossos irmãos mais velhos, para expulsar, apontando a porta, cada um dos convidados, os amigos, as namoradas, as moças e moços de reputação duvidosa, para nos afagar, a nós, os mais pequenos, as nossas barrigas congestionadas, para calcular a febre nas nossas testas, nada disso. Além de impor o silêncio o gesto de nossa mãe abriu um corredor entre os convivas que permaneciam de pé, uma passagem, um túnel afunilado, desde o vértice, no centro da palma da mão erguida de nossa mãe até o escuro emoldurado da porta da entrada aberta, por onde chegou, e pela primeira vez percebemos, o som grave, amplificado, monocórdio, abaixo do tom, o quase zumbido, telúrico, dos mortos-vivos no jardim, entre o curral e a varanda. Os olhares voltaram-se para a porta, todos, quase ao mesmo tempo, e viram, no escuro da noite emoldurado pelo umbral, em outro tom de escuro, mais denso, opaco, talvez mais aveludado, o vulto, a silhueta avançando, hesitante, lenta, primeiro a mão, como se forçasse para romper a membrana elástica que dividia o escuro da noite de fora da claridade amarela, esfumada, matizada das cores coloridas do pisca-pisca da árvore de natal e do aparelho televisor dentro da casa, como se titubeasse, os dedos procurando uma maçaneta invisível, inexistente, para abrir a porta já aberta, como se pedisse licença para entrar, primeiro o braço, depois o ombro, a ponta do nariz, o queixo proeminente, a aba do chapéu avançando, rompendo a película que dividia o escuro do claro, ou o claro do escuro, do ponto de vista de todos os olhares, a atenção dos espectadores suspensa, os contornos, as feições, o jeito de nosso pai que atravessava o túnel, através dos convidados e das convidadas, e dos nossos irmãos mais velhos, e voltava para casa depois de tantos anos desaparecido.
O gesto de nossa mãe, no meio da sala, o braço direito estendido, mão à altura dos ombros, nem adeus nem aguardem-um-momentinho, por si só, sem palavra que o reforçasse, imperativo, interrompeu ao meio a orgia, suspendeu os movimentos, os chistes, os trocadilhos, as risotas, cortou a nuvem de fumaça de cigarros, a mão espalmada de nossa mãe, voltada para cada cara, pronta para esbofetear cada um dos nossos irmãos mais velhos, para expulsar, apontando a porta, cada um dos convidados, os amigos, as namoradas, as moças e moços de reputação duvidosa, para nos afagar, a nós, os mais pequenos, as nossas barrigas congestionadas, para calcular a febre nas nossas testas, nada disso. Além de impor o silêncio o gesto de nossa mãe abriu um corredor entre os convivas que permaneciam de pé, uma passagem, um túnel afunilado, desde o vértice, no centro da palma da mão erguida de nossa mãe até o escuro emoldurado da porta da entrada aberta, por onde chegou, e pela primeira vez percebemos, o som grave, amplificado, monocórdio, abaixo do tom, o quase zumbido, telúrico, dos mortos-vivos no jardim, entre o curral e a varanda. Os olhares voltaram-se para a porta, todos, quase ao mesmo tempo, e viram, no escuro da noite emoldurado pelo umbral, em outro tom de escuro, mais denso, opaco, talvez mais aveludado, o vulto, a silhueta avançando, hesitante, lenta, primeiro a mão, como se forçasse para romper a membrana elástica que dividia o escuro da noite de fora da claridade amarela, esfumada, matizada das cores coloridas do pisca-pisca da árvore de natal e do aparelho televisor dentro da casa, como se titubeasse, os dedos procurando uma maçaneta invisível, inexistente, para abrir a porta já aberta, como se pedisse licença para entrar, primeiro o braço, depois o ombro, a ponta do nariz, o queixo proeminente, a aba do chapéu avançando, rompendo a película que dividia o escuro do claro, ou o claro do escuro, do ponto de vista de todos os olhares, a atenção dos espectadores suspensa, os contornos, as feições, o jeito de nosso pai que atravessava o túnel, através dos convidados e das convidadas, e dos nossos irmãos mais velhos, e voltava para casa depois de tantos anos desaparecido.
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
história de natal (7)
(...)
Nossa mãe entrou sem olhar os nossos irmãos mais velhos, sem ouvir as interjeições de espanto, as desculpas balbuciadas, os cochichos, as risotas irônicas dos convivas, sem tropeçar em qualquer um de nós, os mais pequenos, deitados pelo chão, como cães, pela sala, nos cantos, nos trapos, nos tapetes, nas almofadas, aos pés dos móveis. Atravessou a sala até a estante, desligou o aparelho de som, diminuiu o volume do televisor, virou-se e olhou nos olhos de cada um, que àquela altura tinham se calado, reunidos em círculo em volta de nossa mãe, a parca branca suja de lama, os cabelos desalinhados, as atenções, os olhares no olhar dela, ofuscados pela contraluz colorida das lâmpadas do pisca-pisca da árvore de natal, pelas cores do aparelho de televisão, esperando todos, nossos irmãos mais velhos, os amigos, as namoradas e as moças e moços de conduta duvidosa, esperando o natural naquele tipo de situação, o presumido, que nossa mãe repreendesse os nossos irmãos mais velhos, que expulsasse os convidados, que recolhesse a nós, os mais pequenos, um a um, e nos levasse para as camas uns, para os berços outros, ou simplesmente que se servisse, à mesa próxima, onde fumegavam os assados, o porco, os perus, os frangos, os patos, o consomê, a farofa, a maionese, o arroz branco, os pudins, as musses, os cremes em neve revirados, as frutas nas fruteiras cobertas de moscas, as garrafas de vinho espumante, as latas de cerveja, os copos de uísque pela metade. Porém nossa mãe não estava faminta, nossa mãe sequer desviou o olhar para alguns de nós, os mais pequenos, que acordavam, choramingando, chamando por ela, sem entender o que acontecia, nossa mãe não expulsou os convidados, não repreendeu os nossos irmãos pelo desrespeito, pela impertinência, por aquela quase orgia, justo na noite de natal. Nossa mãe apenas ergueu a mão, a palma voltada para todos os olhares, gesto que pela primeira vez não deixava dúvida, nem de até-logo nem esperem-um-minutinho, gesto dessa vez imperativo de silêncios, que congelava de expectativa o coração de todos, que dissipava os efeitos do vinho, do uísque, da cerveja, que cortava a nuvem de fumaça dos cigarros ao meio, gesto que por si só repreendia os nossos irmãos mais velhos, expulsava os convivas, e somente não levava a nós, os mais pequenos, um a um para nossas camas e berços porque possuía apenas o poder, a energia, o significado, mas não passava de um gesto, e por causa do silêncio imposto nós adivinhamos, antes de ouvir o som familiar, quase zumbido, o rumorejar monocórdio de frequência baixa, quase inaudível, quase percebido somente por sua vibração, vinda da terra, o som que os mortos-vivos às vezes faziam enquanto esperavam minha mãe distribuir-lhes as prendas, sob a neblina ou a garoa fina, no jardim, entre o curral e a varanda da casa, nas manhãs de natal.
Nossa mãe entrou sem olhar os nossos irmãos mais velhos, sem ouvir as interjeições de espanto, as desculpas balbuciadas, os cochichos, as risotas irônicas dos convivas, sem tropeçar em qualquer um de nós, os mais pequenos, deitados pelo chão, como cães, pela sala, nos cantos, nos trapos, nos tapetes, nas almofadas, aos pés dos móveis. Atravessou a sala até a estante, desligou o aparelho de som, diminuiu o volume do televisor, virou-se e olhou nos olhos de cada um, que àquela altura tinham se calado, reunidos em círculo em volta de nossa mãe, a parca branca suja de lama, os cabelos desalinhados, as atenções, os olhares no olhar dela, ofuscados pela contraluz colorida das lâmpadas do pisca-pisca da árvore de natal, pelas cores do aparelho de televisão, esperando todos, nossos irmãos mais velhos, os amigos, as namoradas e as moças e moços de conduta duvidosa, esperando o natural naquele tipo de situação, o presumido, que nossa mãe repreendesse os nossos irmãos mais velhos, que expulsasse os convidados, que recolhesse a nós, os mais pequenos, um a um, e nos levasse para as camas uns, para os berços outros, ou simplesmente que se servisse, à mesa próxima, onde fumegavam os assados, o porco, os perus, os frangos, os patos, o consomê, a farofa, a maionese, o arroz branco, os pudins, as musses, os cremes em neve revirados, as frutas nas fruteiras cobertas de moscas, as garrafas de vinho espumante, as latas de cerveja, os copos de uísque pela metade. Porém nossa mãe não estava faminta, nossa mãe sequer desviou o olhar para alguns de nós, os mais pequenos, que acordavam, choramingando, chamando por ela, sem entender o que acontecia, nossa mãe não expulsou os convidados, não repreendeu os nossos irmãos pelo desrespeito, pela impertinência, por aquela quase orgia, justo na noite de natal. Nossa mãe apenas ergueu a mão, a palma voltada para todos os olhares, gesto que pela primeira vez não deixava dúvida, nem de até-logo nem esperem-um-minutinho, gesto dessa vez imperativo de silêncios, que congelava de expectativa o coração de todos, que dissipava os efeitos do vinho, do uísque, da cerveja, que cortava a nuvem de fumaça dos cigarros ao meio, gesto que por si só repreendia os nossos irmãos mais velhos, expulsava os convivas, e somente não levava a nós, os mais pequenos, um a um para nossas camas e berços porque possuía apenas o poder, a energia, o significado, mas não passava de um gesto, e por causa do silêncio imposto nós adivinhamos, antes de ouvir o som familiar, quase zumbido, o rumorejar monocórdio de frequência baixa, quase inaudível, quase percebido somente por sua vibração, vinda da terra, o som que os mortos-vivos às vezes faziam enquanto esperavam minha mãe distribuir-lhes as prendas, sob a neblina ou a garoa fina, no jardim, entre o curral e a varanda da casa, nas manhãs de natal.
sábado, 24 de dezembro de 2011
história de natal (6)
(...)
Nós, os mais pequenos, exaustos de choramingar pela casa durante todo o dia, mal-e-mal limpados dos mijos e das fezes, mal-e-mal penteados pela empregada, a fome aplacada pelos restos dos pratos, pelas coxas de frango, de pato ou de peru que os nossos irmãos mais velhos nos atiravam, da mesma forma como se atirava pedaços de carne crua aos cães, alguns de nós, os mais pequenos, dormíamos pelos cantos, sobre os tapetes, sobre o capacho da entrada, sobre os trapos dos cachorros e dos gatos, ou, os mais sortudos, sobre alguma almofada surrupiada da sala de visitas, enquanto outros, excitados pela música saindo dos amplificadores de som, do aparelho televisor ligado no último volume, sem ninguém assistir, pelo cheiro dos assados misturado ao cheiro de cerveja derramada e cinzas e fumaça de cigarro, pelo vai-e-vem dos nossos irmãos mais velhos, pelas vozes dos amigos dos nossos irmãos mais velhos, pelos afagos, pelos beliscões nas bochechas dados pelas namoradas e pelas as amigas das namoradas dos amigos e dos nossos irmãos mais velhos e pelas moças de reputação duvidosa, que mal se distinguiam umas das outras, ou ainda, por pura gula, esperando as sobremesas que sabe-se lá quando seriam servidas, ninguém, nem nós, os mais pequenos, nem os nossos irmãos mais velhos e os amigos, e as namoradas, etcétera, ouviu, nem poderia ter ouvido o barulho do motor, nem viu, pelas janelas da sala, os faróis da caminhonete apontando na estrada, primeiro um ponto de luz que podia ser confundido a um vaga-lume deslocando-se lento no escuro e, mais próximo, o duplo foco horizontal em forma de cone, ocultando-se e depois ressurgindo, nas curvas, nos tufos de mata, a freada nas pedras da garagem o bater das duas portas do carro, o plim-plim do alarme acionado, ninguém viu ou poderia ter visto o contorno de nossa mãe parada no umbral da porta da sala, ou melhor, a silhueta um pouco mais escura de nossa mãe recortada no escuro da noite do lado de fora, e mesmo se algum de nós, os mais pequenos, ou mesmo um dos nossos irmãos mais velhos tivesse visto, não teria visto o segundo vulto, em segundo plano ao primeiro da silhueta da nossa mãe no umbral da porta, em um terceiro tom de escuro, intermediário entre o da silhueta de nossa mãe e o escuro da noite, não reconheceria a silhueta de nosso pai, e, mais além, no gramado entre a varanda e o curral, totalmente imersos no escuro do escuro, sob a chuva fina, a multidão de mortos-vivos, imóveis, oscilando, ofegantes, as mãos esquálidas pendidas, um brilho fraquinho vermelho no meio das olheiras escuras, que nossa mãe resgatara, e nos trouxera, de presente, na noite de natal.
Nós, os mais pequenos, exaustos de choramingar pela casa durante todo o dia, mal-e-mal limpados dos mijos e das fezes, mal-e-mal penteados pela empregada, a fome aplacada pelos restos dos pratos, pelas coxas de frango, de pato ou de peru que os nossos irmãos mais velhos nos atiravam, da mesma forma como se atirava pedaços de carne crua aos cães, alguns de nós, os mais pequenos, dormíamos pelos cantos, sobre os tapetes, sobre o capacho da entrada, sobre os trapos dos cachorros e dos gatos, ou, os mais sortudos, sobre alguma almofada surrupiada da sala de visitas, enquanto outros, excitados pela música saindo dos amplificadores de som, do aparelho televisor ligado no último volume, sem ninguém assistir, pelo cheiro dos assados misturado ao cheiro de cerveja derramada e cinzas e fumaça de cigarro, pelo vai-e-vem dos nossos irmãos mais velhos, pelas vozes dos amigos dos nossos irmãos mais velhos, pelos afagos, pelos beliscões nas bochechas dados pelas namoradas e pelas as amigas das namoradas dos amigos e dos nossos irmãos mais velhos e pelas moças de reputação duvidosa, que mal se distinguiam umas das outras, ou ainda, por pura gula, esperando as sobremesas que sabe-se lá quando seriam servidas, ninguém, nem nós, os mais pequenos, nem os nossos irmãos mais velhos e os amigos, e as namoradas, etcétera, ouviu, nem poderia ter ouvido o barulho do motor, nem viu, pelas janelas da sala, os faróis da caminhonete apontando na estrada, primeiro um ponto de luz que podia ser confundido a um vaga-lume deslocando-se lento no escuro e, mais próximo, o duplo foco horizontal em forma de cone, ocultando-se e depois ressurgindo, nas curvas, nos tufos de mata, a freada nas pedras da garagem o bater das duas portas do carro, o plim-plim do alarme acionado, ninguém viu ou poderia ter visto o contorno de nossa mãe parada no umbral da porta da sala, ou melhor, a silhueta um pouco mais escura de nossa mãe recortada no escuro da noite do lado de fora, e mesmo se algum de nós, os mais pequenos, ou mesmo um dos nossos irmãos mais velhos tivesse visto, não teria visto o segundo vulto, em segundo plano ao primeiro da silhueta da nossa mãe no umbral da porta, em um terceiro tom de escuro, intermediário entre o da silhueta de nossa mãe e o escuro da noite, não reconheceria a silhueta de nosso pai, e, mais além, no gramado entre a varanda e o curral, totalmente imersos no escuro do escuro, sob a chuva fina, a multidão de mortos-vivos, imóveis, oscilando, ofegantes, as mãos esquálidas pendidas, um brilho fraquinho vermelho no meio das olheiras escuras, que nossa mãe resgatara, e nos trouxera, de presente, na noite de natal.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
história de natal (5)
(...)
Durante o período que nossa mãe esteve ausente a confusão na casa tomou proporções de caos, incontrolada, agravada pelos apelos inúteis da empregada com a mão suja de penugem e de sangue das galinhas, dos patos e dos perus degolados e depenados na água fervente, de farofa para rechear o leitão, de cebola e de ervas finas no molho para marinar o novilho, tentando colocar um mínimo de ordem, pelo choro dos mais pequenos, mijados, cagados, famintos ou as três coisas juntas, que se estapeavam, puxavam os cabelos ou enfiavam os dedos nos olhos e nos narizes uns dos outros, pelo mugido das vacas que entraram no jardim pela porteira deixada aberta por nossa mãe ao sair de madrugada, e espreitavam com os focinhos encostados nos vidros das janelas o movimento dentro da casa, onde nossos irmãos mais velhos gargalhavam, falavam palavrões, uns jogando truco, outros bebendo, quebrando copos cheios de cerveja e batendo as cinzas dos cigarros no chão ao mesmo tempo, outros grudados no telefone, convidando os amigos, as namoradas, as namoradas dos amigos, as moças e moços de reputação duvidosa para a ceia, mal sabendo nossos irmãos mais velhos que o pior estava prestes a acontecer, que o mal, ou a surpresa, ou o inusitado galopavam cavalos ligeiros, que em breve aquela faina desgovernada causada pela ausência dos mortos-vivos na madrugada da véspera de natal, aquela balbúrdia, aquele deus-nos-acuda, seria a primeira e a última, como seria último o natal que passaríamos todos juntos.
Durante o período que nossa mãe esteve ausente a confusão na casa tomou proporções de caos, incontrolada, agravada pelos apelos inúteis da empregada com a mão suja de penugem e de sangue das galinhas, dos patos e dos perus degolados e depenados na água fervente, de farofa para rechear o leitão, de cebola e de ervas finas no molho para marinar o novilho, tentando colocar um mínimo de ordem, pelo choro dos mais pequenos, mijados, cagados, famintos ou as três coisas juntas, que se estapeavam, puxavam os cabelos ou enfiavam os dedos nos olhos e nos narizes uns dos outros, pelo mugido das vacas que entraram no jardim pela porteira deixada aberta por nossa mãe ao sair de madrugada, e espreitavam com os focinhos encostados nos vidros das janelas o movimento dentro da casa, onde nossos irmãos mais velhos gargalhavam, falavam palavrões, uns jogando truco, outros bebendo, quebrando copos cheios de cerveja e batendo as cinzas dos cigarros no chão ao mesmo tempo, outros grudados no telefone, convidando os amigos, as namoradas, as namoradas dos amigos, as moças e moços de reputação duvidosa para a ceia, mal sabendo nossos irmãos mais velhos que o pior estava prestes a acontecer, que o mal, ou a surpresa, ou o inusitado galopavam cavalos ligeiros, que em breve aquela faina desgovernada causada pela ausência dos mortos-vivos na madrugada da véspera de natal, aquela balbúrdia, aquele deus-nos-acuda, seria a primeira e a última, como seria último o natal que passaríamos todos juntos.
história de natal (4)
(...)
No natal em que os mortos-vivos não vieram e nossa mãe desaparecera nossos irmãos mais velhos se alegraram, pois não seriam obrigados por nossa mãe a arrancar da terra os tufos de grama amarelada e depois seca, entre a varanda e o curral, onde os mortos-vivos pisavam, descalços, enquanto esperavam, oscilando, sob a neblina ou sob a chuva fina, os presentes e os cumprimentos de nossa mãe, e replantar novas mudas, retiradas à enxada além da cerca do curral, onde touceiras de grama cresciam, fartas, viçosas, verdes, em estado quase selvagem.
No natal em que os mortos-vivos não vieram e nossa mãe desaparecera nossos irmãos mais velhos se alegraram, pois não seriam obrigados por nossa mãe a arrancar da terra os tufos de grama amarelada e depois seca, entre a varanda e o curral, onde os mortos-vivos pisavam, descalços, enquanto esperavam, oscilando, sob a neblina ou sob a chuva fina, os presentes e os cumprimentos de nossa mãe, e replantar novas mudas, retiradas à enxada além da cerca do curral, onde touceiras de grama cresciam, fartas, viçosas, verdes, em estado quase selvagem.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
história de natal (3)
(...)
Naquele natal, pouco antes do inevitável acontecer, pela primeira vez os mortos-vivos não vieram. Todos nós, exceto os nossos irmãos mais velhos sentimos a falta deles. Nossa mãe, que se preparara durante as últimas semanas para recebê-los, para presenteá-los com bugigangas, para cumprimentar os adultos e afagar as crianças, foi a única que se ressentiu. E nada adiantou pedir aos nossos irmãos mais velhos para procurá-los, para saber a razão da ausência. Nossa mãe estava certa de algo muito grave acontecera ou, pior, estava prestes a acontecer. Nossos irmãos mais velhos simplesmente recusaram-se a ir, alegando a intransitabilidade das estradas, os atolamentos, os deslizamentos, a vacinação das vacas, o abate dos porcos, do novilho, dos frangos, dos patos e dos perus para a ceia de natal, e mesmo a inutilidade e o despropósito daquelas visitas, que, segundo as palavras deles, já acabavam tarde. Percebendo a inutilidade das súplicas e a frieza dos corações dos nossos irmãos mais velhos, nossa mãe decidiu ela mesma aventurar-se na madrugada invernosa. Vestiu a parca branca com capucho, os tamanquinhos holandeses que nosso pai a presenteara antes do casamento, encontrou as chaves da caminhonete escondida por nossos irmãos mais velhos no velho cofre de prata sobre o aparador e partiu pela estrada do leste, por onde os mortos-vivos sempre vieram. Nós, os mais pequenos, passamos o dia a vagar pelos cômodos da casa, ora choramingando e chamando baixinho o nome da nossa mãe, ora escapulindo das cusparadas de nossos irmãos mais velhos que a cada minuto se tornavam mais e mais impertinentes. O que todos pressentiam, mas ninguém arriscava expressar em palavras, nem os nossos irmãos mais velhos em sua onda de histeria, nem a empregada incapaz de conter o caos, e nem nós, os mais pequenos, transidos de medo, mijados, cagados, sem escovar os dentes ou pentear os cabelos, era a certeza de que nunca mais ouviríamos a voz clara e firme de nossa mãe a nos repreender, de que nunca mais sentiríamos o calor da mão da nossa mãe sobre a nossa barriga congestionada, de que nunca mais teríamos com quem reclamar dos abusos abomináveis cometidos por nossos irmãos mais velhos.
Naquele natal, pouco antes do inevitável acontecer, pela primeira vez os mortos-vivos não vieram. Todos nós, exceto os nossos irmãos mais velhos sentimos a falta deles. Nossa mãe, que se preparara durante as últimas semanas para recebê-los, para presenteá-los com bugigangas, para cumprimentar os adultos e afagar as crianças, foi a única que se ressentiu. E nada adiantou pedir aos nossos irmãos mais velhos para procurá-los, para saber a razão da ausência. Nossa mãe estava certa de algo muito grave acontecera ou, pior, estava prestes a acontecer. Nossos irmãos mais velhos simplesmente recusaram-se a ir, alegando a intransitabilidade das estradas, os atolamentos, os deslizamentos, a vacinação das vacas, o abate dos porcos, do novilho, dos frangos, dos patos e dos perus para a ceia de natal, e mesmo a inutilidade e o despropósito daquelas visitas, que, segundo as palavras deles, já acabavam tarde. Percebendo a inutilidade das súplicas e a frieza dos corações dos nossos irmãos mais velhos, nossa mãe decidiu ela mesma aventurar-se na madrugada invernosa. Vestiu a parca branca com capucho, os tamanquinhos holandeses que nosso pai a presenteara antes do casamento, encontrou as chaves da caminhonete escondida por nossos irmãos mais velhos no velho cofre de prata sobre o aparador e partiu pela estrada do leste, por onde os mortos-vivos sempre vieram. Nós, os mais pequenos, passamos o dia a vagar pelos cômodos da casa, ora choramingando e chamando baixinho o nome da nossa mãe, ora escapulindo das cusparadas de nossos irmãos mais velhos que a cada minuto se tornavam mais e mais impertinentes. O que todos pressentiam, mas ninguém arriscava expressar em palavras, nem os nossos irmãos mais velhos em sua onda de histeria, nem a empregada incapaz de conter o caos, e nem nós, os mais pequenos, transidos de medo, mijados, cagados, sem escovar os dentes ou pentear os cabelos, era a certeza de que nunca mais ouviríamos a voz clara e firme de nossa mãe a nos repreender, de que nunca mais sentiríamos o calor da mão da nossa mãe sobre a nossa barriga congestionada, de que nunca mais teríamos com quem reclamar dos abusos abomináveis cometidos por nossos irmãos mais velhos.
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
história de natal (2)
(...)
Ao contrário dos outros dias, ao invés de lavar as mãos e o rosto com sabonete de glicerina na água com folha de laranja que a empregada trazia na bacia e enxugar-se na toalha bordada, e acariciar os nossos rostos antes de sentar-se à cabeceira da mesa, naquele dia nossa mãe falou pouco e mal tocou na comida do prato. Aguardou que comêssemos, que brigássemos para escolher a coxa, a moela, a forquilha, o coração do frango, que medíssemos o pedaço maior do pudim, a colher mais cheia do doce de leite, que nossos irmãos mais velhos tomassem a primeira, a segunda e a terceira xícara de café, que acendessem e fumassem e batessem as cinzas e apagassem os tocos dos cigarros nos cinzeiros de ferro batido, que a empregada tirasse os pratos e as tigelas e as travessas, para então, com o olhar acima das nossas cabeças sentadas, focado no nada, ou talvez atravessando a parede espessa atrás da qual se avistava as montanhas, o céu e o mar atrás das montanhas, para nossa mãe nos dizer que nosso pai viria, talvez para o jantar, talvez na próxima semana, talvez quando já estivéssemos crescidos, e quando nosso pai chegasse, ela, nossa mãe, provavelmente não estaria mais entre nós.
Ao contrário dos outros dias, ao invés de lavar as mãos e o rosto com sabonete de glicerina na água com folha de laranja que a empregada trazia na bacia e enxugar-se na toalha bordada, e acariciar os nossos rostos antes de sentar-se à cabeceira da mesa, naquele dia nossa mãe falou pouco e mal tocou na comida do prato. Aguardou que comêssemos, que brigássemos para escolher a coxa, a moela, a forquilha, o coração do frango, que medíssemos o pedaço maior do pudim, a colher mais cheia do doce de leite, que nossos irmãos mais velhos tomassem a primeira, a segunda e a terceira xícara de café, que acendessem e fumassem e batessem as cinzas e apagassem os tocos dos cigarros nos cinzeiros de ferro batido, que a empregada tirasse os pratos e as tigelas e as travessas, para então, com o olhar acima das nossas cabeças sentadas, focado no nada, ou talvez atravessando a parede espessa atrás da qual se avistava as montanhas, o céu e o mar atrás das montanhas, para nossa mãe nos dizer que nosso pai viria, talvez para o jantar, talvez na próxima semana, talvez quando já estivéssemos crescidos, e quando nosso pai chegasse, ela, nossa mãe, provavelmente não estaria mais entre nós.
história de natal (1)
(...)
Os mortos-vivos chegavam durante a madrugada da véspera do natal. Acotovelavam-se em silêncio, ou, no máximo em um murmúrio grave, monocórdio, abaixo do tom, quase um zumbido, sob a neblina ou sob a garoa fria, na parte da frente da casa, esperando, passivos, entre a varanda e os currais. Não fosse pelas roupas fora de moda, pela palidez esquálida dos rostos, pelas mãos muito finas sempre dependuradas ou as olheiras quase negras eles podiam ser facilmente confundidos com peregrinos, visitas ou parentes distantes que há muito tempo não víamos. Nós, os mais pequenos, éramos terminantemente proibidos de nos levantar da cama, mas mesmo assim nos espremíamos no vidro da janela do quarto para ver nossa mãe, vestida com a parca branca com capucho, e calçada com os tamanquinhos holandeses que nosso pai a presenteara antes de se casarem - para ver nossa mãe distribuindo a cada um dos mortos-vivos uma lembrança embrulhada em papel laminado, um pacote de fumo, uma chave-de-fenda, um canivete vagabundo para os homens, um jogo de agulhas, retroses coloridos, batons pela metade para as mulheres, e pequenos bonecos modelados em massa de biscuí para as crianças, independente se meninos ou meninas. Em seguida à cada presente entregue nossa mãe apertava de leve, quase sem tocar, as mãos dos homens, beijava quase sem tocar as faces das mulheres e afundava os dedos quase sem tocar os cabelos embarrados das crianças. Esse ritual durava toda a manhã e às vezes parte da tarde e só era interrompido por não mais que uma hora, por volta do meio-dia, quando a empregada avisava, da varanda, que o almoço estava servido. Então, do terceiro degrau ela virava-se e acenava aos mortos-vivos, uma mistura de adeusinho e um-momentinho, e os mortos-vivos ficavam lá, parados, os pés firmemente apoiados na lama misturada com esterco e grama pisoteada, oscilando de leve, sem nenhum esboço de cansaço, pois, como é sabido, os mortos-vivos nunca se cansam, os mortos-vivos não sentem fome, os mortos-vivos possuem a eternidade.
Os mortos-vivos chegavam durante a madrugada da véspera do natal. Acotovelavam-se em silêncio, ou, no máximo em um murmúrio grave, monocórdio, abaixo do tom, quase um zumbido, sob a neblina ou sob a garoa fria, na parte da frente da casa, esperando, passivos, entre a varanda e os currais. Não fosse pelas roupas fora de moda, pela palidez esquálida dos rostos, pelas mãos muito finas sempre dependuradas ou as olheiras quase negras eles podiam ser facilmente confundidos com peregrinos, visitas ou parentes distantes que há muito tempo não víamos. Nós, os mais pequenos, éramos terminantemente proibidos de nos levantar da cama, mas mesmo assim nos espremíamos no vidro da janela do quarto para ver nossa mãe, vestida com a parca branca com capucho, e calçada com os tamanquinhos holandeses que nosso pai a presenteara antes de se casarem - para ver nossa mãe distribuindo a cada um dos mortos-vivos uma lembrança embrulhada em papel laminado, um pacote de fumo, uma chave-de-fenda, um canivete vagabundo para os homens, um jogo de agulhas, retroses coloridos, batons pela metade para as mulheres, e pequenos bonecos modelados em massa de biscuí para as crianças, independente se meninos ou meninas. Em seguida à cada presente entregue nossa mãe apertava de leve, quase sem tocar, as mãos dos homens, beijava quase sem tocar as faces das mulheres e afundava os dedos quase sem tocar os cabelos embarrados das crianças. Esse ritual durava toda a manhã e às vezes parte da tarde e só era interrompido por não mais que uma hora, por volta do meio-dia, quando a empregada avisava, da varanda, que o almoço estava servido. Então, do terceiro degrau ela virava-se e acenava aos mortos-vivos, uma mistura de adeusinho e um-momentinho, e os mortos-vivos ficavam lá, parados, os pés firmemente apoiados na lama misturada com esterco e grama pisoteada, oscilando de leve, sem nenhum esboço de cansaço, pois, como é sabido, os mortos-vivos nunca se cansam, os mortos-vivos não sentem fome, os mortos-vivos possuem a eternidade.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
do diário anterior (5)
(...)
Quando nós nos esquecíamos e mencionávamos sem querer durante o almoço os dobrões de prata, os patacões de ouro, as gemas de cores e tamanhos variados, as correntinhas de ouro com seus respectivos escapulários ou camafeus, os braceletes em forma de serpente com olhos de rubis, os pingentes em forma de escaravelhos cor de esmeralda, os copaços de bronze marchetados, os medalhões do baú guardado no sótão, nossa mãe batia com mais força a colher de pau na borda do caldeirão, apagava o fogo, enxugava as mãos no pano de prato bordado com pimentas vermelhas, abria a gaveta de cima, tirava da bainha a faca de cabo preto das cebolas e riscava horizontalmente o ar três vezes, na altura dos nossos olhos, como se para cortar qualquer resquício, qualquer vínculo, qualquer tentáculo, qualquer âncora, qualquer amarra que nos arrastasse outra vez para o meio da tempestade onde embicava desgovernada a nau fantasma que sabíamos ter pertencido ao nosso pai.
Quando nós nos esquecíamos e mencionávamos sem querer durante o almoço os dobrões de prata, os patacões de ouro, as gemas de cores e tamanhos variados, as correntinhas de ouro com seus respectivos escapulários ou camafeus, os braceletes em forma de serpente com olhos de rubis, os pingentes em forma de escaravelhos cor de esmeralda, os copaços de bronze marchetados, os medalhões do baú guardado no sótão, nossa mãe batia com mais força a colher de pau na borda do caldeirão, apagava o fogo, enxugava as mãos no pano de prato bordado com pimentas vermelhas, abria a gaveta de cima, tirava da bainha a faca de cabo preto das cebolas e riscava horizontalmente o ar três vezes, na altura dos nossos olhos, como se para cortar qualquer resquício, qualquer vínculo, qualquer tentáculo, qualquer âncora, qualquer amarra que nos arrastasse outra vez para o meio da tempestade onde embicava desgovernada a nau fantasma que sabíamos ter pertencido ao nosso pai.
do diário anterior (4)
(...)
Quando ainda éramos capazes de nos equilibrar sobre as nossas próprias pernas e enxergarmos mais de um palmo adiante dos nossos narizes, pouco antes de anoitecer nós cavávamos um buraco na superfície do gelo sobre o lago, com diâmetro suficiente para que pudéssemos mergulhar. De madrugada nós abríamos as portas e as janelas da casa e deixávamos o vento e as cores cambiantes da aurora boreal cobrirem os nossos corpos. E quando a pele enregelava e os dentes trincavam de frio nós pulávamos da cama, descíamos correndo dos nossos quartos, atravessávamos a sala passando bem longe do fogo, cruzávamos o jardim (cuja grama congelada cortava os nossos pés), saltávamos a cerca até a superfície do lago e constatávamos que onde antes era o buraco cavado durante a tarde não passava de um círculo torto de gelo mais fino e transparente por onde só nos restava assistir ao movimento lento dos cabelos das algas no fundo da água.
Quando ainda éramos capazes de nos equilibrar sobre as nossas próprias pernas e enxergarmos mais de um palmo adiante dos nossos narizes, pouco antes de anoitecer nós cavávamos um buraco na superfície do gelo sobre o lago, com diâmetro suficiente para que pudéssemos mergulhar. De madrugada nós abríamos as portas e as janelas da casa e deixávamos o vento e as cores cambiantes da aurora boreal cobrirem os nossos corpos. E quando a pele enregelava e os dentes trincavam de frio nós pulávamos da cama, descíamos correndo dos nossos quartos, atravessávamos a sala passando bem longe do fogo, cruzávamos o jardim (cuja grama congelada cortava os nossos pés), saltávamos a cerca até a superfície do lago e constatávamos que onde antes era o buraco cavado durante a tarde não passava de um círculo torto de gelo mais fino e transparente por onde só nos restava assistir ao movimento lento dos cabelos das algas no fundo da água.
domingo, 18 de dezembro de 2011
do diário anterior (3)
(...)
Antes os mortos ainda não eram assustadores. Uma vez por semana vinham cear conosco na varanda ao anoitecer. Os gatos subiam para os telhados, os cães uivavam pouco e sem vontade e se enroscavam pelos cantos. Os mortos vinham e tiravam dos bolsos cheios de terra histórias misturadas a sementes, a fiapos de tecido podre, a botões de osso que há muito tempo não se fabricavam mais. Geralmente as histórias eram boas de serem ouvidas. Quando não valiam a pena e nós nos dispersávamos, os mortos tiravam os instrumentos das sacolas e cantavam e tocavam e dançavam músicas e danças tão alegres que nos faziam esquecer de que nós éramos os vivos e que mais cedo ou mais tarde seríamos nós os que tocariam e cantariam e dançariam e contariam histórias na varanda ao anoitecer.
Antes os mortos ainda não eram assustadores. Uma vez por semana vinham cear conosco na varanda ao anoitecer. Os gatos subiam para os telhados, os cães uivavam pouco e sem vontade e se enroscavam pelos cantos. Os mortos vinham e tiravam dos bolsos cheios de terra histórias misturadas a sementes, a fiapos de tecido podre, a botões de osso que há muito tempo não se fabricavam mais. Geralmente as histórias eram boas de serem ouvidas. Quando não valiam a pena e nós nos dispersávamos, os mortos tiravam os instrumentos das sacolas e cantavam e tocavam e dançavam músicas e danças tão alegres que nos faziam esquecer de que nós éramos os vivos e que mais cedo ou mais tarde seríamos nós os que tocariam e cantariam e dançariam e contariam histórias na varanda ao anoitecer.
do diário anterior (2)
(...)
Antes, na parte da frente havia janelas largas que se abriam para paisagens diurnas, mar de ressaca, praias ensolaradas emolduradas por coqueiros, picos cobertos de neve, ravinas de girassois ondulando ao vento, cânions, manadas de bisões emergindo de nuvem de poeira ou girafas, zebras e elefantes pastando no meio da savana. Nos fundos as janelas eram menores, quase respiradouros, basculantes, mais parecidas com escotilhas, de onde a noite se desenrolva suave, como uma névoa, um véu, um rolo de algodão negro envolvendo as coisas.
Antes, na parte da frente havia janelas largas que se abriam para paisagens diurnas, mar de ressaca, praias ensolaradas emolduradas por coqueiros, picos cobertos de neve, ravinas de girassois ondulando ao vento, cânions, manadas de bisões emergindo de nuvem de poeira ou girafas, zebras e elefantes pastando no meio da savana. Nos fundos as janelas eram menores, quase respiradouros, basculantes, mais parecidas com escotilhas, de onde a noite se desenrolva suave, como uma névoa, um véu, um rolo de algodão negro envolvendo as coisas.
do diário anterior (1)
(...)
Antes havia botões e depois flores e depois frutos a brotar nas pontas dos galhos, havia ovos de larvas a escovar das folhas, havia formigas subindo pelo tronco, havia até ninhos desajetiados que mal se sustentavam em duas ou três bifurcações de ramos. Havia a terra fofa de sereno logo de manhã, mosquitos a picar os tornozelos ou os ombros descobertos, réstias de sol ou quando muito gotas da chuva noturna pingando no nariz e respingando no rosto quando soprava o vento. Havia também o trabalho subterrâneo das larvas, as crisálidas enterradas durante anos para nascerem borboletas de apenas um dia, túneis das térmites aflorando tão delicados na superfície vermelha da terra, havia pedras quase lisas como ovos de avestruzes ou de répteis pré-históricos e debaixo delas ovos verdadeiros dos lagartos, centopeias enrolando-se em espirais, esporões bifurcados das lacraias, escorpiões vermelhos e besouros verde-esmeralda tão pequenos quanto broches que corroíam as folhas.
Antes havia botões e depois flores e depois frutos a brotar nas pontas dos galhos, havia ovos de larvas a escovar das folhas, havia formigas subindo pelo tronco, havia até ninhos desajetiados que mal se sustentavam em duas ou três bifurcações de ramos. Havia a terra fofa de sereno logo de manhã, mosquitos a picar os tornozelos ou os ombros descobertos, réstias de sol ou quando muito gotas da chuva noturna pingando no nariz e respingando no rosto quando soprava o vento. Havia também o trabalho subterrâneo das larvas, as crisálidas enterradas durante anos para nascerem borboletas de apenas um dia, túneis das térmites aflorando tão delicados na superfície vermelha da terra, havia pedras quase lisas como ovos de avestruzes ou de répteis pré-históricos e debaixo delas ovos verdadeiros dos lagartos, centopeias enrolando-se em espirais, esporões bifurcados das lacraias, escorpiões vermelhos e besouros verde-esmeralda tão pequenos quanto broches que corroíam as folhas.
sábado, 17 de dezembro de 2011
diário gerúndio 5
Estipulando prazos e tramando escaramuças. Passando a limpo as memórias do porvir. Dessalgando o passado. Retardando o agora. Singularizando a pluralidade. Hesitando em mergulhar no vazio. Perdendo o fôlego. Queimando as naus. Recolhendo a água das goteiras. Providenciando guarda-chuva & galochas & parca branca com capucho. Cantando e dançando in the rain. Molhando os pés & a alma. Espalhando ventos e colhendo tempestade. Atravessando o arco-íris. Dançando no escuro. Sapateando sobre o teu caixão. Cantarolando com Aracy. Matando as saudades & colocando a conversa em dia & estudando os descaminhos. Ajustando as sinastrias. Sesteando depois do almoço. Dando banho nos cães. Trocando os móveis de lugar. Buscando um lugar ao sol.
terça-feira, 13 de dezembro de 2011
diário gerúndio 4
Tomando uísque com guaraná. Tomando chá de cogumelos com leite condensado. Tomando leitinho quente antes de dormir. Tomando chá de cicuta com stevia antes da próxima hecatombe. Tomando água. Comendo tortelete de limão. Descansando à sombra das cerejeiras em flor. Puxando ferros com a terceira e a quarta idades. Puxando papo com a coletora de impostos. Arrastando as asinhas para a aeromoça. Dando trela para o desalento. Dando linha para o inconsútil. Amarrando o mal. Desobstruindo os dutos urinários. Atropelando as regrinhas do consenso. Procurando entender auschwitz e marcel proust. Discutindo imortalidade com a preta-velha. Agendando compromissos para o próximo milênio. Classificando a intemporalidade. Montando um camelo no oásis. Dando uma de sharriar. Cavalgando o corcel de mohamed. Consumindo a última coca-cola do deserto.
diário gerúndio 3
Recalculando os créditos do karma. Desenhando em pedacinhos de papel de seda. Rindo das próprias idiossincrasias. Trocando a terra dos vasos de palmeirinhas. Levando a gata manhosa pela décima vez ao psicoterapeuta. Enviando torpedos para os desafetos. Achando a vida cor-de-rosa apesar de tudo. Ligando o fucko-you. Assistindo cowboys & aliens. Agarrando as oportunidades pelos cabelos. Estalando os artelhos. Cortando as unhas. Ouvindo mantras. Ouvindo nina hagen. Ouvindo wagner. Ouvindo o coraçãozinho do feto no ultrassom. Ouvindo as vibes dos visitantes noturnos. Ouvindo o poema da menina gorda. Perguntando se ele gosta de mim? Ouvindo as trombetas dos anjos vingadores. Desconstruindo o pilar da ponte de tédio que vai de mim para o outro. Dizendo que te amo.
domingo, 11 de dezembro de 2011
diário gerúndio 2
Administrando egos alheios. Finalizando relações sem sentido. Comemorando o ano que se finda. Fingindo que tudo pode mudar. Pensando no México e no Rio Douro. Lambendo feridas que não cicatrizam. Revendo Oscar Wilde. Arrancando as ervas daninhas do gramado. Cortando o mal pela raiz. Adiantando o protelado. Dormitando na repartição. Fingindo a dor que deveras sinto. Avançando o sinal vermelho do insensato coração. Rompendo amarras. Rompendo barreiras eletrônicas. Rompendo barricadas. Superando o superego. Tomando ansiolíticos e 500 ml de energético. Aprendendo a lição. Decorando o papel de madrasta má. Dançando até os calos doerem. Ouvindo o silêncio ancestral. Escrevendo aleivosias. Desejando tudo de bom para os alteregos.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
escritos arqueológicos / fragmentos proto-históricos 2
Halo. A lua sobre os telhados da cidade submersa. Os olhos vermelhos dos peixes-curiangos. As folhas das árvores-algas ao sabor das correntes aquáticas. Barcos fantasmas singram a superfície. Esqueletos amarrados nos mastros. Fogos-fátuos. Sirenes. Um farol ao longe.
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Espíritos dos ancestrais vagueiam à noite no pomar. Na amurada. Nas escadarias do salão nupcial. Roçando os cascos dos barcos na areia. As pedras das soleiras. As vigas dos casebres. Atravessam as grossas portas inutilmente protegidas por escapulários & bentinhos. E se aninham ao pé do fogo contando histórias para ninguém ouvir.
...
Imagens do dia: Os fragmentos do corpo cobertos por um lençol de neve. A mulher diante dos destroços amamenta o bebê-caveira. Os enforcados na praça vermelha oscilam ao sabor da brisa. A nau dos enjeitados encalhada no telhado. A morte do homem-girafa e o nascimento do orangotango albino. O alarme das sirenas na travessia de Gibraltar.
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Dormir o sono eterno e só acordar depois do meio-dia.
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Espíritos dos ancestrais vagueiam à noite no pomar. Na amurada. Nas escadarias do salão nupcial. Roçando os cascos dos barcos na areia. As pedras das soleiras. As vigas dos casebres. Atravessam as grossas portas inutilmente protegidas por escapulários & bentinhos. E se aninham ao pé do fogo contando histórias para ninguém ouvir.
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Imagens do dia: Os fragmentos do corpo cobertos por um lençol de neve. A mulher diante dos destroços amamenta o bebê-caveira. Os enforcados na praça vermelha oscilam ao sabor da brisa. A nau dos enjeitados encalhada no telhado. A morte do homem-girafa e o nascimento do orangotango albino. O alarme das sirenas na travessia de Gibraltar.
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Dormir o sono eterno e só acordar depois do meio-dia.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
diário gerúndio
Arrumando os livros. Dormindo mal. Ouvindo Debussy. Trabalhando na entressafra. Lendo sobre a Rússia. Cuidando da gata manhosa. Relevando os defeitos alheios. Buscando intensidades. Recolhendo cadáveres nos umbrais. Admirando o chão cor de fúcsia. Colhendo ventania. Esperando Godot. Preparando geleia de pitanga. Dependurando quadros. Desencaixotando o passado. Revisitando as situações-limite. Respondendo s'il vous plaît. Selecionando silêncios. Falando pelos cotovelos. Andando a pé. Purificando o espírito. Escapulindo. Engambelando o fim próximo. Roendo as unhas.
escritos arqueológicos / fragmentos proto-históricos
Pausa. O silêncio das eras. Das esferas. Respiro. O escuro. O vazio contraditório que permeia os corpos sólidos. Os corpos etéreos. As estrelas. Os quasares. Os buracos negros. As nuvens radioativas. Aguardo o fim.
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Não me lembro onde eu estava quando choveu ouro. Quando o touro fecundou a rainha. Quando a águia raptou nosso filho. Quando o barco atravessou as caribdes. Quando a pera rolou de novo montanha abaixo. Quando o abutre arrancou teu fígado. Quando cuspiram no rosto da moça. Quando ele se virou para olhar a morta.
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Sonhávamos.
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Nereidas acompanham o nosso último banho de mar. O seu corpo branco contra o cinza da água. Contra o cinza do céu. Contra o cinza da areia. Os primeiros pingos da chuva lavam a tinta do cabelo do homem até o desejo dele secar.
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Paciência. O que ainda nos falta?
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Não me lembro onde eu estava quando choveu ouro. Quando o touro fecundou a rainha. Quando a águia raptou nosso filho. Quando o barco atravessou as caribdes. Quando a pera rolou de novo montanha abaixo. Quando o abutre arrancou teu fígado. Quando cuspiram no rosto da moça. Quando ele se virou para olhar a morta.
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Sonhávamos.
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Nereidas acompanham o nosso último banho de mar. O seu corpo branco contra o cinza da água. Contra o cinza do céu. Contra o cinza da areia. Os primeiros pingos da chuva lavam a tinta do cabelo do homem até o desejo dele secar.
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Paciência. O que ainda nos falta?
domingo, 4 de dezembro de 2011
escritos arqueológicos última parte
Enclausurado em um 3 metros cúbicos de matéria. Mármore, madeira, cimento, metal, porcelana, papel, água, ar. Carne e osso circundados de matéria. Dentro e fora. Presos por fios de aço ao espaço, ao mundo, ao real. 3 metros cúbicos de existência dentro do nada.
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Luz branca. Zumbido em si-bemol. Ininterruptamente.
...
Fora, o fogo das entranhas, dos vulcões, do inferno. Ou vácuo, o neutro, o nada do purgatório. O paraíso é dentro.
...
O arco das asas brancas do voo. Da subida e da queda. Sonho.
...
A deusa-deus negra da morte e da vida vagueia. Sonâmbulo-sonâmbula. Nunca-agora. O nome, o eco. Por vales, abismos e montanhas. Tremor. Trovão. Treva.
...
Depois, a volta ao começo.
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Luz branca. Zumbido em si-bemol. Ininterruptamente.
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Fora, o fogo das entranhas, dos vulcões, do inferno. Ou vácuo, o neutro, o nada do purgatório. O paraíso é dentro.
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O arco das asas brancas do voo. Da subida e da queda. Sonho.
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A deusa-deus negra da morte e da vida vagueia. Sonâmbulo-sonâmbula. Nunca-agora. O nome, o eco. Por vales, abismos e montanhas. Tremor. Trovão. Treva.
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Depois, a volta ao começo.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
escritos arqueológicos parte 9
Aquele que não tem pele. Aquele em carne viva. Aquele das madrugadas insones. Das bolhas de sangue, das secreções que supuram o quarto. Aquele que escorre, gota a gota, pelas escadas do prédio. Até rua. Aquele que inunda de si a cidade inteira.
...
O menino nu. Espirais crescentes de trechos melódicos. Fantasmas atrás dos vidros. Atrás das lentes das máquinas fotográficas. Carros em alta velocidade riscando a escuridão de vermelho e mercúrio. Livros nas prateleiras. O menino mudo. Ossos, manuscritos e restos de comida no porão. Baratas nos cantos do quarto. O menino morto.
...
Minha vida de transeunte. Engulo o vulcão de mim. Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Desespero.
...
O menino nu. Espirais crescentes de trechos melódicos. Fantasmas atrás dos vidros. Atrás das lentes das máquinas fotográficas. Carros em alta velocidade riscando a escuridão de vermelho e mercúrio. Livros nas prateleiras. O menino mudo. Ossos, manuscritos e restos de comida no porão. Baratas nos cantos do quarto. O menino morto.
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Minha vida de transeunte. Engulo o vulcão de mim. Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Espero.
Desespero.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
escritos arqueológicos parte 8
Tudo está envolto em hipersensibilidade. Meus olhos cegos, meus ouvidos obstruídos. Ajoelho-me aos pés de um deus anônimo, pagão e invisível que sou eu mesmo do lado de dentro.
...
A raiz brotou. A ramagem espalhou-se, viçosa, e floresceu. Os frutos de vidro vermelho trincavam nos caules antes de se espatifar no chão, espalhando centelhas de eletricidade.
...
Insetos gigantes pululam. Amebas e protozoários nos pântanos. No céu o sobrevôo dos pterodáctilos. Ictiossauros e plesiosauros nas profundezas. Cordilheira de vulcões eruptos no horizonte. Sou o primeiro homem antes do amanhecer no jardim do éden.
...
O que você procura está nas entrelinhas. Você me instiga a te provocar. Não te ensinarei o rumo sinuoso das palavras. Vagueia desgovernado direto para o abismo, manada, multidão, rebanho-um.
...
A próxima palavra-armadilha cobre o fosso com estacas fincadas no fundo.
...
Você me cria e eu te destruo. Você a luz, eu o negro. Quando eu te mato, você me renasce. Prisioneiros do ciclo perpétuo. O sol nasce.
...
A raiz brotou. A ramagem espalhou-se, viçosa, e floresceu. Os frutos de vidro vermelho trincavam nos caules antes de se espatifar no chão, espalhando centelhas de eletricidade.
...
Insetos gigantes pululam. Amebas e protozoários nos pântanos. No céu o sobrevôo dos pterodáctilos. Ictiossauros e plesiosauros nas profundezas. Cordilheira de vulcões eruptos no horizonte. Sou o primeiro homem antes do amanhecer no jardim do éden.
...
O que você procura está nas entrelinhas. Você me instiga a te provocar. Não te ensinarei o rumo sinuoso das palavras. Vagueia desgovernado direto para o abismo, manada, multidão, rebanho-um.
...
A próxima palavra-armadilha cobre o fosso com estacas fincadas no fundo.
...
Você me cria e eu te destruo. Você a luz, eu o negro. Quando eu te mato, você me renasce. Prisioneiros do ciclo perpétuo. O sol nasce.
quarta-feira, 30 de novembro de 2011
escritos arqueológicos parte 7
Eu te amo pelo que você é e não sabe.
...
O impulso para o outro é impreciso. Eu me lanço às cegas, aos solavancos, tateio no escuro, sigo, volto, hesito, vou, paro. Seguro as chaves do proibido e não sei onde usá-las.
...
Predestinado a quê? A possuir a inutilidade? A nulidade? A sequência entre o tempo presente e o tempo futuro? Será necessário descer do pedestal e me atirar, águia, pomba, anjo, harpia, abutre - asas de cera derretendo-se com o calor do sol.
...
O impulso para o outro é impreciso. Eu me lanço às cegas, aos solavancos, tateio no escuro, sigo, volto, hesito, vou, paro. Seguro as chaves do proibido e não sei onde usá-las.
...
Predestinado a quê? A possuir a inutilidade? A nulidade? A sequência entre o tempo presente e o tempo futuro? Será necessário descer do pedestal e me atirar, águia, pomba, anjo, harpia, abutre - asas de cera derretendo-se com o calor do sol.
...
Porém o agora é difuso e nebuloso. O caos de dentro refletido fora. Erupção, nuvem de cinza e enxofre, lava, fezes, vômito. Quando renascerão as fênix?
...
Serei terrível. A mão direita a trucidar e a esquerda a redimir.
...
O cavalo corre no campo de girassóis. Os demônios, os deuses do sonho. Gerar-se e se enterrar a cada novo segundo. O medo habita a dúvida.
...
O cavalo corre no campo de girassóis. Os demônios, os deuses do sonho. Gerar-se e se enterrar a cada novo segundo. O medo habita a dúvida.
...
Ansioso por não conseguir dar nomes às novas sensações: o escrito aquém da verdade. Aprenderei humildade, paciência e resignação?
terça-feira, 29 de novembro de 2011
escritos arqueológicos parte 6
enquanto os homens desbravavam a terra eu fiquei junto com as mulheres o menino dormindo no meu colo cuidávamos do fogo gritávamos com as crianças na água fervíamos o óleo falávamos sobre aleitamento sangramento fertilidade até os homens voltarem heróis de barba e cabelos enlameados guerreiros distribuindo a caça a pesca caçadores bebendo todo o vinho conquistadores triunfantes rindo inventando as lendas apoderando-se dos mitos fecundando as fêmeas e o leite e o mênstruo e os óvulos e a lua os meus despojos as minhas oferendas eu eunuco nulo entre eles entre elas eu nenhuma barriga parideira nenhum sêmen nenhum peito que amamente nenhum escalpo no cinto o zero o inútil o único a intersecção tão longe e tão preciso e tão essencial quanto o resto daquilo tudo
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
escritos arqueológicos parte 5
O músculo mais delicado estensão ao máximo. Você, o arco. Meu corpo pede música. Toca!
...
Escrevo curto e nervoso. Fui esticado até quase arrebentar. Padeço de reconstituição. Os gatos brincam na grama atrás do play-ground. Sou infinitamente só. Sombra solene a olhar, da janela, a tua criação.
...
Escuto a tua voz e não entendo. Nem agora. Também não. Agora mais próximo. Mais. Eu quase ouço. Pronto. Agora eu escuto até teu coração pulsando. Você disse: eu nada sei. Eu ri. Eu era mais feliz com as tuas mentiras.
...
Há milhões de anos-luz. Antes eu não sei. Quando a bola de energia, a bola de Nada explodiu e se dividiu e dividiu e dividiu e se transformou em neutron, próton, elétron. Por um instante estávamos só você e eu.
...
Pega a estrela e vai. Cristal envolto em névoa. Amanhece na metade ocidental do planeta.
...
Estou cansado. Confuso. Perdido. Falando a uma pessoa ausente. Ainda o cheiro carbônico da tua despedida nas pontas dos dedos. Você viaja, mudo, só, escuro, no silêncio do espaço exterior. Para além de Saturno e seus anéis gasosos.
...
Escrevo curto e nervoso. Fui esticado até quase arrebentar. Padeço de reconstituição. Os gatos brincam na grama atrás do play-ground. Sou infinitamente só. Sombra solene a olhar, da janela, a tua criação.
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Escuto a tua voz e não entendo. Nem agora. Também não. Agora mais próximo. Mais. Eu quase ouço. Pronto. Agora eu escuto até teu coração pulsando. Você disse: eu nada sei. Eu ri. Eu era mais feliz com as tuas mentiras.
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Há milhões de anos-luz. Antes eu não sei. Quando a bola de energia, a bola de Nada explodiu e se dividiu e dividiu e dividiu e se transformou em neutron, próton, elétron. Por um instante estávamos só você e eu.
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Pega a estrela e vai. Cristal envolto em névoa. Amanhece na metade ocidental do planeta.
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Estou cansado. Confuso. Perdido. Falando a uma pessoa ausente. Ainda o cheiro carbônico da tua despedida nas pontas dos dedos. Você viaja, mudo, só, escuro, no silêncio do espaço exterior. Para além de Saturno e seus anéis gasosos.
domingo, 27 de novembro de 2011
escritos arqueológicos parte 4
Eu, você. Imagem, reflexo, ímãs. Você fruto vermelho-alaranjado. Eu, monstro-boca, monstro-garganta, monstro-dentes-devoradores. Beijo, mordida, casca rompida, polpa, monstro-língua em tua carne doce, gozo.
...
O cansaço do começo. De não saber dizer o que se passa. Traduzir. Pausa de tempo. De espaço. Eu parado, atento, olhando. Você parado, alheio, fazendo. Eu, rio invisível a te ver. Você, lago envolto em azul.
...
Caquis sob a chuva. Mangas apodrecidas no chão. Mosquitos. Besouros. Mariposas. Vermes.
...
Ecos das horas vazias. Os caquis no quase-explode.
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
escritos arqueológicos parte 3
Eu te forçarei a me ver. Para isto eu me faço fosforescente. Olha. Meu corpo é todo holofotes. Eu te direi em letras de gás néon que se acendem e apagam: hoje eu te direi apenas o essencial. Agora desligarei os luminosos. Você me verá pelo que sou; não pela luz irradiada.
...
Sejamos simplesmente intuição na razão.
...
A partir de agora o tom do das palavras será azul. Palavras-chaves. Palavras-claves.
...
A mulher toca violoncelo. No deserto. O azul é o som do instrumento a se perder nas dunas. Música azul.
...
Aracne: Tecerei. Uma teia de fios de cristal azulados. Para envolver o mundo. Para me envolver ao mundo. Para me humanizar. Para te aprisionar quando voares perto.
...
Eu, prisioneiro de mim mesmo. Quando a gente se repete se repete se repete, resta fazer.
...
Agora a precisão de instrumentos é indispensável. O mínimo desvio da lâmina pode ser irreversível. Quase. Tento abrir meu centro vital. Uma centelha elétrica descarrega-se. O centro vital origina a centelha que me faz todo sentidos. Me mantém vivo. Como corpo. Ente. Ser. Morrerei por um instante. E o som de violoncelo ocupará o espaço.
...
Sejamos simplesmente intuição na razão.
...
A partir de agora o tom do das palavras será azul. Palavras-chaves. Palavras-claves.
...
A mulher toca violoncelo. No deserto. O azul é o som do instrumento a se perder nas dunas. Música azul.
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Aracne: Tecerei. Uma teia de fios de cristal azulados. Para envolver o mundo. Para me envolver ao mundo. Para me humanizar. Para te aprisionar quando voares perto.
...
Eu, prisioneiro de mim mesmo. Quando a gente se repete se repete se repete, resta fazer.
...
Agora a precisão de instrumentos é indispensável. O mínimo desvio da lâmina pode ser irreversível. Quase. Tento abrir meu centro vital. Uma centelha elétrica descarrega-se. O centro vital origina a centelha que me faz todo sentidos. Me mantém vivo. Como corpo. Ente. Ser. Morrerei por um instante. E o som de violoncelo ocupará o espaço.
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
o terremoto de lisboa (1755)
(...)
"[Escutei] uma espécie de barulho estranho e assustador por baixo da terra, parecido com o ribombar oco e distante do trovão".
(...)
O segundo abalo do terremoto foi ainda mais alto e feroz do que o primeiro. "A casa em que eu estava foi sacudida com tamanha violência, que os andares de cima desabaram imediatamente; (...) as paredes continuavam a balançar de um lado para outro da maneira mais assustadora, rachando-se em diversos pontos; pedras grandes caíam das rachaduras por todos os lados e, no fim, a maioria dos caibros começou a despencar do teto. (...) O céu, de um minuto para outro, ficou tão tenebroso que eu já não conseguia distinguir nenhum objeto; foi realmente uma Escuridão Egípcia".
(...)
O terceiro abalo veio uns quinze minutos depois do primeiro. (...) Todos os sinos das igrejas tocaram sozinhos, badalando o toque da devastação, até seus campanários fenderem e os sinos caírem na rua, com enorme estépito. "Viu-se toda a faixa de terra em torno de Lisboa arquear-se como a subida das vagas numa tempestade (...) ora de leste para oeste, ora de norte para sul; as paredes que ainda não tinham sido derrubadas oscilavam para frente e para trás, com pulsações alternadas, e com a continuação dos trovões embaixo da terra, a cidade parecia estar não apenas sendo sacudida mas violentamente arrancada de suas fundações mais profundas".
(...)
A elevação da superfície da terra e o desmoronamento das grandes construções marcaram apenas o início da catástrofe. Quase que imediatamente ao assentar a poeira do primeiro abalo, irromperam incêndios em meia dúzia de pontos diferentes.(...) Um vento nordeste atiçou as chamas. As labaredas espalharam-se da igreja de São Domingos em direção ao rio Tejo, depois pelas encostas ocidental e meridional da Colina do Castelo e, em seguida, por todo o centro da cidade.
E arderam furiosamente por cinco dias.
(...)
Tudo ficou reduzido a cinzas. (...) Muitas coisas poderiam ter sido salvas depois dos abalos do terremoto, mas o fogo se espalhou por toda a parte. Relíquias sagradas, bibliotecas de valor inestimável, tapeçarias, móveis, forros de altares, tudo terminou nas labaredas. Só no palácio real, 70.000 livros foram destruídos; no palácio dos duques de Bragança, todos os arquivos da família real desapareceram; no palácio do marquês de Louriçal, o fogo devastou duzentos quadros, inclusive obras de Tiziano, Coreggio e Rubens, além de 18.000 livros e 1.000 manuscritos, entre eles um livro de história redigido de próprio punho pelo imperador Carlos V.
(...)
Em meio ao colapso e à conflagração, cerca de uma hora depois do primeiro tremor, houve mais uma catástrofe, talvez a mais pavorosa de todas. Enquanto os cidadãos abalados olhavam para o porto do Tejo, as águas subitamente pareceram começar a vazar para o mar. (...) De repente, o poderoso Tejo elevou-se a uma altura assustadora, impossível, cerca de nove metros acima de seu nível normal, tudo no espaço de alguns minutos. (...) A vaga do maremoto subiu três vezes em cinco minutos. (...) Os barcos próximos da costa (...) "num ou dois minutos ficaram a seco, depois tornaram a flutuar, e foram atirados uns contra os outros, e a vaga ia com tal rapidez para leste e para oeste, que os navios, girando velozmente, colidiam uns com os outros. (...) A água subiu a uma altura tal que transbordou e inundou a parte baixa da cidade (...) o que aterrorizou a tal ponto os pobres e já desolados habitantes, que corriam de um lado para o outro com gritos pavorosos (...) que os fez achar que a dissolução do mundo havia chegado, todos caindo de joelhos e implorando pela ajuda do Todo-Poderoso".
(...)
"De repente, ouvi uma gritaria geral, 'O mar está vindo, estamos todos perdidos!' Nisso, voltando os olhos para o rio, que tem mais de seis quilômetros de largura nesse ponto, pude percebê-lo subindo e se inflando da maneira mais inexplicável, já que não soprava vento algum; num instante, a uma pequena distância, surgiu uma grande massa d'água, subindo como uma montanha, que entrou espumando e rugindo, e correu com tal ímpeto em direção à costa, que todos saímos correndo na mesma hora, o mais depressa possível, para salvar nossas vidas; muitos foram realmente arrastados, e outros ficaram com água pela cintura a uma boa distância da margem".
(Otto Friedrich, O Fim do Mundo)
"[Escutei] uma espécie de barulho estranho e assustador por baixo da terra, parecido com o ribombar oco e distante do trovão".
(...)
O segundo abalo do terremoto foi ainda mais alto e feroz do que o primeiro. "A casa em que eu estava foi sacudida com tamanha violência, que os andares de cima desabaram imediatamente; (...) as paredes continuavam a balançar de um lado para outro da maneira mais assustadora, rachando-se em diversos pontos; pedras grandes caíam das rachaduras por todos os lados e, no fim, a maioria dos caibros começou a despencar do teto. (...) O céu, de um minuto para outro, ficou tão tenebroso que eu já não conseguia distinguir nenhum objeto; foi realmente uma Escuridão Egípcia".
(...)
O terceiro abalo veio uns quinze minutos depois do primeiro. (...) Todos os sinos das igrejas tocaram sozinhos, badalando o toque da devastação, até seus campanários fenderem e os sinos caírem na rua, com enorme estépito. "Viu-se toda a faixa de terra em torno de Lisboa arquear-se como a subida das vagas numa tempestade (...) ora de leste para oeste, ora de norte para sul; as paredes que ainda não tinham sido derrubadas oscilavam para frente e para trás, com pulsações alternadas, e com a continuação dos trovões embaixo da terra, a cidade parecia estar não apenas sendo sacudida mas violentamente arrancada de suas fundações mais profundas".
(...)
A elevação da superfície da terra e o desmoronamento das grandes construções marcaram apenas o início da catástrofe. Quase que imediatamente ao assentar a poeira do primeiro abalo, irromperam incêndios em meia dúzia de pontos diferentes.(...) Um vento nordeste atiçou as chamas. As labaredas espalharam-se da igreja de São Domingos em direção ao rio Tejo, depois pelas encostas ocidental e meridional da Colina do Castelo e, em seguida, por todo o centro da cidade.
E arderam furiosamente por cinco dias.
(...)
Tudo ficou reduzido a cinzas. (...) Muitas coisas poderiam ter sido salvas depois dos abalos do terremoto, mas o fogo se espalhou por toda a parte. Relíquias sagradas, bibliotecas de valor inestimável, tapeçarias, móveis, forros de altares, tudo terminou nas labaredas. Só no palácio real, 70.000 livros foram destruídos; no palácio dos duques de Bragança, todos os arquivos da família real desapareceram; no palácio do marquês de Louriçal, o fogo devastou duzentos quadros, inclusive obras de Tiziano, Coreggio e Rubens, além de 18.000 livros e 1.000 manuscritos, entre eles um livro de história redigido de próprio punho pelo imperador Carlos V.
(...)
Em meio ao colapso e à conflagração, cerca de uma hora depois do primeiro tremor, houve mais uma catástrofe, talvez a mais pavorosa de todas. Enquanto os cidadãos abalados olhavam para o porto do Tejo, as águas subitamente pareceram começar a vazar para o mar. (...) De repente, o poderoso Tejo elevou-se a uma altura assustadora, impossível, cerca de nove metros acima de seu nível normal, tudo no espaço de alguns minutos. (...) A vaga do maremoto subiu três vezes em cinco minutos. (...) Os barcos próximos da costa (...) "num ou dois minutos ficaram a seco, depois tornaram a flutuar, e foram atirados uns contra os outros, e a vaga ia com tal rapidez para leste e para oeste, que os navios, girando velozmente, colidiam uns com os outros. (...) A água subiu a uma altura tal que transbordou e inundou a parte baixa da cidade (...) o que aterrorizou a tal ponto os pobres e já desolados habitantes, que corriam de um lado para o outro com gritos pavorosos (...) que os fez achar que a dissolução do mundo havia chegado, todos caindo de joelhos e implorando pela ajuda do Todo-Poderoso".
(...)
"De repente, ouvi uma gritaria geral, 'O mar está vindo, estamos todos perdidos!' Nisso, voltando os olhos para o rio, que tem mais de seis quilômetros de largura nesse ponto, pude percebê-lo subindo e se inflando da maneira mais inexplicável, já que não soprava vento algum; num instante, a uma pequena distância, surgiu uma grande massa d'água, subindo como uma montanha, que entrou espumando e rugindo, e correu com tal ímpeto em direção à costa, que todos saímos correndo na mesma hora, o mais depressa possível, para salvar nossas vidas; muitos foram realmente arrastados, e outros ficaram com água pela cintura a uma boa distância da margem".
(Otto Friedrich, O Fim do Mundo)
alberto caeiro (1925)
É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.
terça-feira, 22 de novembro de 2011
escritos arqueológicos parte 2
Você é eu e eu sou você nesse nosso jogo de espelhos. Eu me enraizo e você floresce no galho mais alto da árvore do desenho amassado. Eu broto vegetação rasteira. Você, fruto maduro prestes a arrebentar. Somos o princípio das coisas. Desde o princípio. Também o término.
...
Toca-me o corpo com teu corpo inteiro, pois meu tato é morto. Com gritos, pois meus sons são surdos. Com luz e fogo, pois costurei meus olhos. Com teu cheiro de flor e súlfur. Com tua língua que me abre e te deposita inteiro em mim.
...
Tudo em volta brilha e me obscurece. Sou a imagem oposta ao que vem de fora no espelho. Eu me abro. Antes que a força do acaso - regente de todas as outras - me aniquile. Antes que o tempo me engula.
...
Concordo: é preciso esgotar nosso diálogo.
...
Toca-me o corpo com teu corpo inteiro, pois meu tato é morto. Com gritos, pois meus sons são surdos. Com luz e fogo, pois costurei meus olhos. Com teu cheiro de flor e súlfur. Com tua língua que me abre e te deposita inteiro em mim.
...
Tudo em volta brilha e me obscurece. Sou a imagem oposta ao que vem de fora no espelho. Eu me abro. Antes que a força do acaso - regente de todas as outras - me aniquile. Antes que o tempo me engula.
...
Concordo: é preciso esgotar nosso diálogo.
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
escritos arqueológicos
Jogamos o jogo de encher e esvaziar formas. Eu lanço palavras vazias e você as preenche com argamassa. Eu recolho as palavras preenchidas. Modelo as palavras preenchidas em novas formas vazias. Você as preenche. Etcétera.
Minha vez: da janela duas mulheres sorriem e um vidro transparente nos separa.
Tua vez: uma delas sofre por envelhecer e a outra tem o riso oco de mãe satisfeita.
Minha vez: o vidro permite a imagem delas atravessá-lo mas também me reflete.
Tua vez: porque elas estão mais em ti do que tu nelas.
Eu: como o homem e a mulher do violoncelo no deserto.
Você: e você deserto, homem, mulher, música, vento.
Eu: a mulher atrás do dia.
Você: desde o princípio dos tempos.
...
A dissonância arranha teu ouvido. O mais agudo do violoncelo. Hipnotiza. E o som mais grave do órgão ecoa na nave da catedral. Eu me entrego.
...
A antepenúltima coisa a dizer é batiscafo. A palavra chega com vento de deserto. Mergulhar.
...
A penúltima coisa é: isto é uma sinfonia; escuta:
Minha vez: da janela duas mulheres sorriem e um vidro transparente nos separa.
Tua vez: uma delas sofre por envelhecer e a outra tem o riso oco de mãe satisfeita.
Minha vez: o vidro permite a imagem delas atravessá-lo mas também me reflete.
Tua vez: porque elas estão mais em ti do que tu nelas.
Eu: como o homem e a mulher do violoncelo no deserto.
Você: e você deserto, homem, mulher, música, vento.
Eu: a mulher atrás do dia.
Você: desde o princípio dos tempos.
...
A dissonância arranha teu ouvido. O mais agudo do violoncelo. Hipnotiza. E o som mais grave do órgão ecoa na nave da catedral. Eu me entrego.
...
A antepenúltima coisa a dizer é batiscafo. A palavra chega com vento de deserto. Mergulhar.
...
A penúltima coisa é: isto é uma sinfonia; escuta:
domingo, 20 de novembro de 2011
(outra parte de texto escrito em 1980)
"Sobreviver - árvore que extrai da terra a seiva e transforma-a em ar que respira e transforma novamente em terra: ciclo biológico ao qual estamos presos e ao qual viver é fugir dele, deixar a vontade seguir seu curso, escapulir do centro, cometer loucuras e voltar ao ciclo irremediável. Ser é a dúvida: penetrar ciclos e não-ciclos, tomar consciência deles, megulhar, depois aceitá-los ou combatê-los. Não-ser é obscuro e sólido - apossar-se do ser, lançar-se no abismo, desaparecer no vácuo, no escuro do mundo. Mas existir? Colocar-se em espírito a todas as coisas? Infiltrar-se nos intervalos energéticos das moléculas? incorporar-se? - existir é o Princípio".
sábado, 19 de novembro de 2011
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
(parte de texto escrito em 1980)
Do lado de fora a tarde clara, límpida depois da chuva. Estou mergulhado em um profundo azul. O lustre de cristal pende do teto, como pequenos sóis. A igreja azul violeta. Deixa-me dissolver em azul e violeta, peço suavemente. Espero o organista invisível tocar. Logo despertarei sobressaltado com os primeiros acordes do órgão. O azul ascende o corpo. O altar, o Cristo crucificado, o tapete vermelho, os bancos enfileirados. O desejo de esvaziar o espaço. De preencher o espaço de azul violeta. Irremediavelmente encharcado da cor. O ar muito denso e meus pulmões não se acostumam.
Toca, organista, eu peço. Ele me olha, adivinha a ânsia. Mas é mau, a própria Maldade do Azul. Ri e mantém o órgão em silêncio. Em espírito elevo-me e danço, enquanto a música invisível se espalha saída dos dedos do organista mudo. Os sentidos explodem, o corpo pede música de ondas, pede espaço real de azuis e violetas. Mais uma vez grito - toca, organista. Ele dedilha o ar, o azul comprimindo, expandindo - respirando por mim no silêncio ensurdecedor. Meu ato de humildade diante dele - lavarei seus pés por tamanha graça ter-se me dado: ouvir o azul sem um som que fosse concreto.
Uma fila de colegiais entra pela porta lateral. Profanam o templo com suas vozes abafadas. Substituirão o espaço do azul. Bancos, tapetes vermelhos, altares, crucifixo. Conversam em sussurros e expulsam o órgão. Vieram para cantar. E cantarão. Antes da tarde acabar. De acenderem o lustre de cristal. Do o azul ser substituído. Os adolescentes se posicionam nas escadas, cochicham e riem. Encobrem os sons azuis do órgão - Hosanah!
Logo eu sairei. Logo a realidade daquela meia hora da tarde esvanecerá para sempre. Eu saio com as mãos sujas de sangue de trucidar vozes brancas e o organista mudo. Eu me alivio com o ar de fora que se torna verde. Hosanah! Saio do sacrifício - adolescentes mortos: oferenda ao azul - Hosanah! Os sinos badalam seis horas. A tarde depois da chuva. As meninas jogando queimada. A fumaça dos ônibus. Tudo é um grande deus de mãos sujas e sangue.
Toca, organista, eu peço. Ele me olha, adivinha a ânsia. Mas é mau, a própria Maldade do Azul. Ri e mantém o órgão em silêncio. Em espírito elevo-me e danço, enquanto a música invisível se espalha saída dos dedos do organista mudo. Os sentidos explodem, o corpo pede música de ondas, pede espaço real de azuis e violetas. Mais uma vez grito - toca, organista. Ele dedilha o ar, o azul comprimindo, expandindo - respirando por mim no silêncio ensurdecedor. Meu ato de humildade diante dele - lavarei seus pés por tamanha graça ter-se me dado: ouvir o azul sem um som que fosse concreto.
Uma fila de colegiais entra pela porta lateral. Profanam o templo com suas vozes abafadas. Substituirão o espaço do azul. Bancos, tapetes vermelhos, altares, crucifixo. Conversam em sussurros e expulsam o órgão. Vieram para cantar. E cantarão. Antes da tarde acabar. De acenderem o lustre de cristal. Do o azul ser substituído. Os adolescentes se posicionam nas escadas, cochicham e riem. Encobrem os sons azuis do órgão - Hosanah!
Logo eu sairei. Logo a realidade daquela meia hora da tarde esvanecerá para sempre. Eu saio com as mãos sujas de sangue de trucidar vozes brancas e o organista mudo. Eu me alivio com o ar de fora que se torna verde. Hosanah! Saio do sacrifício - adolescentes mortos: oferenda ao azul - Hosanah! Os sinos badalam seis horas. A tarde depois da chuva. As meninas jogando queimada. A fumaça dos ônibus. Tudo é um grande deus de mãos sujas e sangue.
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
purificação
6 da tarde. Tinha sido uma segunda-feira de sol depois do sábado e do domingo chuvoso. As árvores do estacionamento, a grama muito verde da quadra, uma nuvem de insetos, o ar azul, translúcido, o resto do sol incidindo na parede verde do prédio em frente me fizeram esquecer.
Eu, como sempre, atrasada. Não de propósito. Era um vício, um defeito, uma doença, o inconsciente. Eu sempre atrapalhada, até os últimos minutos: maquiagem, combinação improvável da roupa, sumiço da chave, endereço errado, etc.
Além disso eu não tinha vontade, eu não queria me lembrar como deveria me comportar, a situação que, desde muito tempo, não passava de um compromisso social: casamento, batizado e, agora, o sétimo dia do falecimento do pai da amiga.
O lugar era lindo, moderno, amplo, limpo, claro. Mosaicos cobriam as paredes altas atrás do altar: Jesus vestido com uma túnica cor de vinho, rodeado de dourado e ladeado, à direita por um santo de túnica vermelha empunhando a espada e à esquerda por um anjo de asas e botas brancas pisando um dragão. As imagens sobressaíam do fundo de pastilhas azuis e estrelas douradas.
Porém algo conspurcava a simplicidade bizantina das imagens. Talvez os exageros: os aparelhos de ar condicionado enfileirados; o espaço largo entre os bancos; o granito do piso; os candelabros, a bíblia segurados pelos anjos de bronze; o versículo, em grego, no frontispício do mármore do altar; o retábulo e o ostensório, ostensivamente grandes nos espaços entre os santos do mosaico; a entonação da voz de veludo doce do ajudante; tudo, enfim.
Só depois de algum tempo comecei a perceber o sentido das palavras ditas pelo padre ao microfone e projetadas na tela que, do nada, desceu do teto e encobriu a cabeça do anjo. O sermão não era amor, bondade, aceitação e perdão. A parábola pregava palavras duras, vingativas, imperiosas, acusadoras, crueis.
Então tinha sido aquele ódio que me afastara? Que distorcera, que transformara a minha crença em uma mistura confusa, indefinida, contraditória, de várias incredulidades? Que me fazia duvidar e ao mesmo tempo me entregar, cega, nas horas de desespero? Que anulava e ao mesmo tempo ampliava os meus defeitos, as minhas falhas de caráter, a minha obstinação, os meus pecados?
Eu, que desde criança me recusava a repetir os refrões. Que me levantava, automaticamente, quando todos se levantavam e me sentava quando mandavam sentar. Que não me ajoelhava, não me persignava, não acertava o sentido, a mão direita ou esquerda com que fazer o sinal da cruz. Que mexia a boca fingindo pronunciar as orações teimosamente não decoradas. Que ao mesmo tempo repetia: tomou o cálice em suas mãos, bebeu e comeu, partiu e dividiu aos seus discípulos dizendo tomai e comei todos vós, o meu corpo e o meu sangue que vos é dado, eu.
Eu, o ser estranho, ovelha desajeitada do rebanho, a dos pecadilhos indignos, a madalena medíocre, que cobiçava o alheio por não me sentir suficientemente boa, que não me esforçava em ser menos pior, que não enfiara a nota de vinte reais no saco de flanela vermelha das esmolas, que não entrara na fila da hóstia por não ter me confessado, que acreditava no divino além das palavras, dos gestos pungentes, dramáticos, teatrais, nos versículos escolhidos para sangrar, eu, que saíra mais cedo do trabalho, que só queria revalidar a amizade à amiga, eu sob o olhar severo, julgada e condenada, não, eu nunca seria escolhida para fazer parte daquele rebanho.
Foi quando a velha segurou a minha mão. Eu senti a mão da velha enquanto cavalgava o cavalo do apocalipse e atravessava a lança no peito dos infieis do demônio disfarçado, os gritos das beatas, das falsas puras, das canalhas, das que tinham sido perdoadas, das que não cometiam pecado, a água derramada sobre o granito, o barulho do balde de prata rolando, o hissope, a batina ensanguentada, o ajudante estrebuchando, a velha sabia, ela me acompanhara até o calvário e me conduzia pela senda escura do desassossego.
O padre espargia água. Purificai-me, Senhor, de um lado e do outro, eu pedia e, ao mesmo tempo, que a água não me fervesse sobre a pele de vampira, tanta a ira que havia no olhar dele. No meu olhar.
Eu, como sempre, atrasada. Não de propósito. Era um vício, um defeito, uma doença, o inconsciente. Eu sempre atrapalhada, até os últimos minutos: maquiagem, combinação improvável da roupa, sumiço da chave, endereço errado, etc.
Além disso eu não tinha vontade, eu não queria me lembrar como deveria me comportar, a situação que, desde muito tempo, não passava de um compromisso social: casamento, batizado e, agora, o sétimo dia do falecimento do pai da amiga.
O lugar era lindo, moderno, amplo, limpo, claro. Mosaicos cobriam as paredes altas atrás do altar: Jesus vestido com uma túnica cor de vinho, rodeado de dourado e ladeado, à direita por um santo de túnica vermelha empunhando a espada e à esquerda por um anjo de asas e botas brancas pisando um dragão. As imagens sobressaíam do fundo de pastilhas azuis e estrelas douradas.
Porém algo conspurcava a simplicidade bizantina das imagens. Talvez os exageros: os aparelhos de ar condicionado enfileirados; o espaço largo entre os bancos; o granito do piso; os candelabros, a bíblia segurados pelos anjos de bronze; o versículo, em grego, no frontispício do mármore do altar; o retábulo e o ostensório, ostensivamente grandes nos espaços entre os santos do mosaico; a entonação da voz de veludo doce do ajudante; tudo, enfim.
Só depois de algum tempo comecei a perceber o sentido das palavras ditas pelo padre ao microfone e projetadas na tela que, do nada, desceu do teto e encobriu a cabeça do anjo. O sermão não era amor, bondade, aceitação e perdão. A parábola pregava palavras duras, vingativas, imperiosas, acusadoras, crueis.
Então tinha sido aquele ódio que me afastara? Que distorcera, que transformara a minha crença em uma mistura confusa, indefinida, contraditória, de várias incredulidades? Que me fazia duvidar e ao mesmo tempo me entregar, cega, nas horas de desespero? Que anulava e ao mesmo tempo ampliava os meus defeitos, as minhas falhas de caráter, a minha obstinação, os meus pecados?
Eu, que desde criança me recusava a repetir os refrões. Que me levantava, automaticamente, quando todos se levantavam e me sentava quando mandavam sentar. Que não me ajoelhava, não me persignava, não acertava o sentido, a mão direita ou esquerda com que fazer o sinal da cruz. Que mexia a boca fingindo pronunciar as orações teimosamente não decoradas. Que ao mesmo tempo repetia: tomou o cálice em suas mãos, bebeu e comeu, partiu e dividiu aos seus discípulos dizendo tomai e comei todos vós, o meu corpo e o meu sangue que vos é dado, eu.
Eu, o ser estranho, ovelha desajeitada do rebanho, a dos pecadilhos indignos, a madalena medíocre, que cobiçava o alheio por não me sentir suficientemente boa, que não me esforçava em ser menos pior, que não enfiara a nota de vinte reais no saco de flanela vermelha das esmolas, que não entrara na fila da hóstia por não ter me confessado, que acreditava no divino além das palavras, dos gestos pungentes, dramáticos, teatrais, nos versículos escolhidos para sangrar, eu, que saíra mais cedo do trabalho, que só queria revalidar a amizade à amiga, eu sob o olhar severo, julgada e condenada, não, eu nunca seria escolhida para fazer parte daquele rebanho.
Foi quando a velha segurou a minha mão. Eu senti a mão da velha enquanto cavalgava o cavalo do apocalipse e atravessava a lança no peito dos infieis do demônio disfarçado, os gritos das beatas, das falsas puras, das canalhas, das que tinham sido perdoadas, das que não cometiam pecado, a água derramada sobre o granito, o barulho do balde de prata rolando, o hissope, a batina ensanguentada, o ajudante estrebuchando, a velha sabia, ela me acompanhara até o calvário e me conduzia pela senda escura do desassossego.
O padre espargia água. Purificai-me, Senhor, de um lado e do outro, eu pedia e, ao mesmo tempo, que a água não me fervesse sobre a pele de vampira, tanta a ira que havia no olhar dele. No meu olhar.
terça-feira, 15 de novembro de 2011
bela adormecida
Meu nome é Aurora. Odeio. Nome de velha. Ok. Tecnicamente sou uma centenária.
Contaram-me. O resto são reminiscências. E recortes dos jornais da época. Afinal, dormi 100 anos. Começarei do princípio. O batizado.
Mamãe tinha tirado os 7 pratos de ouro, as 7 colheres, os 7 garfos, as 7 facas e os 7 talheres de sobremesa de prata, as 7 taças de cristal, os 7 guardanapos de linho, as 7 sopeiras de porcelana chinesa da cristaleira.
Para servir as 7 tias-madrinhas. Por ato falho mamãe começou a festa antes da tia-madrinha Setênia chegar. Solteirona. Problemática. Turrona. Ressentida. Ok. Se não fosse ela, não haveria história.
Ah, já me esquecia: as 7 tias-madrinhas eram fadas. Os presentes eram virtudes: bondade, beleza, inteligência, temperança, diligência, riqueza e humildade.
Tia Setênia chegou atrasada. Armando o maior barraco com o manobrista, o segurança, a recepcionista. O chefe do cerimonial interveio. Imaginem quando ela viu a festa acontecendo sem ela?
Ficou furiosa. Fora de si. Xingou. As piores imprecações. E a praga: eu morreria aos 15 anos, picada por agulha de máquina de costura.
Máquina de costura? Já naquela época era tão antiquado que ninguém se preocupou. Aqueles risonhos disfarçados, o promoter anunciando a próxima atração, o brinde. A festa seguiu como se quase nada tivesse acontecido.
As 6 tias-madrinhas boazinhas deram os presentes diante dos convidados. Em seguida reuniram-se com mamãe e papai em reservado. Impossível anular a maldição. Só amenizar. Tia Setênia era mesmo do babado.
Sono ao invés da morte. Dormir até ser despertada pelo verdadeiro amor. Na semana seguinte, 50 anos depois ou, sabe-se lá quando… Ou seja: parecido com morrer.
Por precaução (o seguro morreu de velho) papai fechou as fábricas, proibiu a importação e determinou a destruição de todas as máquinas de costura do reino.
Eu crescia cada vez mais bondosa, linda, inteligente, equilibrada, diligente, rica, humilde, modesta. E ignorante da minha sina.
Foi na semana da festa de 15 anos. Chovia horrores. Os amiguinhos (filhos e filhas dos criados) ajudavam nos afazeres dos pais. Mamãe não desgrudava do celular. Nada a fazer.
Eu nunca antes tinha notado aquela escadaria. Em espiral. Com cheiro de mofo e xixi de gato. Do alto vinha um barulho indefinível. Tipo um besouro. Ou videogame. Subi. No fim da escada havia uma porta. Entrei.
Estava lá uma velhota. Debruçada em um objeto esquisito. De onde saía o barulhinho. Tecidos por todos os lados. Curiosa, fui com a mão – o que é isso? – apontando para a agulha. A velhota não teve tempo de explicar. A agulha me picou (ou eu me piquei na agulha?).
Depois eu não me lembro. Só o lido nos recortes de jornal. Caí desmaiada. Provavelmente a velhota gargalhou, metamorfoseou-se em morcego ou mariposa e esvoaçou pela janela.
Legal esse trecho: “Adormeceram no trono o rei e a rainha, recém-chegados da partida de caça. Adormeceram os cavalos na estrebaria, as galinhas no galinheiro, os cães no pátio e os pássaros no telhado. Adormeceu o cozinheiro que assava a carne e o servente que lavava as louças; adormeceram os cavaleiros com as espadas na mão e as damas que enrolavam seus cabelos. Também o fogo que ardia nos braseiros e nas lareiras parou de queimar, parou também o vento que assobiava na floresta. Nada e ninguém se mexia no palácio, mergulhado em profundo silêncio”.
Cresceu um matagal em volta do castelo. A notícia se espalhou. Virei conto de fadas. Eu e o resto da galera despertaríamos assim que me beijassem um beijo de amor verdadeiro.
Dezenas de aventureiros tentaram desbravar o matagal intransponível e despertar a bela adormecida. Desistiam ou morriam. Passaram-se 100 anos.
Foi um garoto. 17 anos. Bonito como um modelo. Filipe. Soube de mim em um texto da apostila do pré-vestibular. Bobinho, Cheio de fantasias. Apaixonou-se. Para minha sorte.
Cortou o mato. Entrou no castelo. Tudo e todos congelados. Afazeres interrompidos pelo sono. Subiu a torre. Me achou afundada nos tecidos. Disse que eu era idêntica à ilustração da apostila. Me beijou.
Acordei. O garoto beijava gostoso. Meu hálito devia estar um horror. Com licença, querido, vou escovar os dentes.
Veio com a conversa de casar felizes para sempre.
Casar? Depois de dormir 100 anos? Eu queria aproveitar a vida. Me atualizar. Sair. Fazer amigos. Balada. Festinha. Acampar. Fazer teatro. Intercâmbio. Etc.
A paixão dele passou rápido. Agora, namora meu pajem. Uma graça os dois juntos. Apesar da diferença de idade ficamos amigos.
Ele me ensina como me comportar nos tempos atuais. Tenho muito o que aprender. Ano que vem visitarei as primas em Barcelona. Papai quer que eu estude direito. Mamãe, me levar para fazer compras em Miami. As tias telefonam de vez em quando.
Papai e mamãe ficam horrorizados: eu morro de vontade de conhecer tia Setênia. Eu me identifico com ela. Esquisitona. Temperamental. Diferente. Voluntariosa. Tenho a impressão que a gente vai se entender super-bem.
Contaram-me. O resto são reminiscências. E recortes dos jornais da época. Afinal, dormi 100 anos. Começarei do princípio. O batizado.
Mamãe tinha tirado os 7 pratos de ouro, as 7 colheres, os 7 garfos, as 7 facas e os 7 talheres de sobremesa de prata, as 7 taças de cristal, os 7 guardanapos de linho, as 7 sopeiras de porcelana chinesa da cristaleira.
Para servir as 7 tias-madrinhas. Por ato falho mamãe começou a festa antes da tia-madrinha Setênia chegar. Solteirona. Problemática. Turrona. Ressentida. Ok. Se não fosse ela, não haveria história.
Ah, já me esquecia: as 7 tias-madrinhas eram fadas. Os presentes eram virtudes: bondade, beleza, inteligência, temperança, diligência, riqueza e humildade.
Tia Setênia chegou atrasada. Armando o maior barraco com o manobrista, o segurança, a recepcionista. O chefe do cerimonial interveio. Imaginem quando ela viu a festa acontecendo sem ela?
Ficou furiosa. Fora de si. Xingou. As piores imprecações. E a praga: eu morreria aos 15 anos, picada por agulha de máquina de costura.
Máquina de costura? Já naquela época era tão antiquado que ninguém se preocupou. Aqueles risonhos disfarçados, o promoter anunciando a próxima atração, o brinde. A festa seguiu como se quase nada tivesse acontecido.
As 6 tias-madrinhas boazinhas deram os presentes diante dos convidados. Em seguida reuniram-se com mamãe e papai em reservado. Impossível anular a maldição. Só amenizar. Tia Setênia era mesmo do babado.
Sono ao invés da morte. Dormir até ser despertada pelo verdadeiro amor. Na semana seguinte, 50 anos depois ou, sabe-se lá quando… Ou seja: parecido com morrer.
Por precaução (o seguro morreu de velho) papai fechou as fábricas, proibiu a importação e determinou a destruição de todas as máquinas de costura do reino.
Eu crescia cada vez mais bondosa, linda, inteligente, equilibrada, diligente, rica, humilde, modesta. E ignorante da minha sina.
Foi na semana da festa de 15 anos. Chovia horrores. Os amiguinhos (filhos e filhas dos criados) ajudavam nos afazeres dos pais. Mamãe não desgrudava do celular. Nada a fazer.
Eu nunca antes tinha notado aquela escadaria. Em espiral. Com cheiro de mofo e xixi de gato. Do alto vinha um barulho indefinível. Tipo um besouro. Ou videogame. Subi. No fim da escada havia uma porta. Entrei.
Estava lá uma velhota. Debruçada em um objeto esquisito. De onde saía o barulhinho. Tecidos por todos os lados. Curiosa, fui com a mão – o que é isso? – apontando para a agulha. A velhota não teve tempo de explicar. A agulha me picou (ou eu me piquei na agulha?).
Depois eu não me lembro. Só o lido nos recortes de jornal. Caí desmaiada. Provavelmente a velhota gargalhou, metamorfoseou-se em morcego ou mariposa e esvoaçou pela janela.
Legal esse trecho: “Adormeceram no trono o rei e a rainha, recém-chegados da partida de caça. Adormeceram os cavalos na estrebaria, as galinhas no galinheiro, os cães no pátio e os pássaros no telhado. Adormeceu o cozinheiro que assava a carne e o servente que lavava as louças; adormeceram os cavaleiros com as espadas na mão e as damas que enrolavam seus cabelos. Também o fogo que ardia nos braseiros e nas lareiras parou de queimar, parou também o vento que assobiava na floresta. Nada e ninguém se mexia no palácio, mergulhado em profundo silêncio”.
Cresceu um matagal em volta do castelo. A notícia se espalhou. Virei conto de fadas. Eu e o resto da galera despertaríamos assim que me beijassem um beijo de amor verdadeiro.
Dezenas de aventureiros tentaram desbravar o matagal intransponível e despertar a bela adormecida. Desistiam ou morriam. Passaram-se 100 anos.
Foi um garoto. 17 anos. Bonito como um modelo. Filipe. Soube de mim em um texto da apostila do pré-vestibular. Bobinho, Cheio de fantasias. Apaixonou-se. Para minha sorte.
Cortou o mato. Entrou no castelo. Tudo e todos congelados. Afazeres interrompidos pelo sono. Subiu a torre. Me achou afundada nos tecidos. Disse que eu era idêntica à ilustração da apostila. Me beijou.
Acordei. O garoto beijava gostoso. Meu hálito devia estar um horror. Com licença, querido, vou escovar os dentes.
Veio com a conversa de casar felizes para sempre.
Casar? Depois de dormir 100 anos? Eu queria aproveitar a vida. Me atualizar. Sair. Fazer amigos. Balada. Festinha. Acampar. Fazer teatro. Intercâmbio. Etc.
A paixão dele passou rápido. Agora, namora meu pajem. Uma graça os dois juntos. Apesar da diferença de idade ficamos amigos.
Ele me ensina como me comportar nos tempos atuais. Tenho muito o que aprender. Ano que vem visitarei as primas em Barcelona. Papai quer que eu estude direito. Mamãe, me levar para fazer compras em Miami. As tias telefonam de vez em quando.
Papai e mamãe ficam horrorizados: eu morro de vontade de conhecer tia Setênia. Eu me identifico com ela. Esquisitona. Temperamental. Diferente. Voluntariosa. Tenho a impressão que a gente vai se entender super-bem.
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
o escriturário (trechos - anotações a lápis no verso da folha 27)
Assim, além de solitário, o ser físico e animado compartilha seus planos modulares com seres imateriais.
Em termos comuns, a solidão do ser é povoada de fantasmas, aos quais erroneamente são denominados semelhantes.
A diferença entre o primeiro e o segundo plano modular é, basicamente, relacionada à alterações temporais quase imperceptíveis.
(palavras ilegíveis), a não ser, por exemplo, por um cansaço maior ao atravessar uma praça que parece maior do que realmente é, ou a sensação de já ter vivido aquela situação específica, provocada por alguma redução abrupta.
tensão do tempo, que se acelera ou e, às vezes, distorções espaciais sutis.
Em termos comuns, a solidão do ser é povoada de fantasmas, aos quais erroneamente são denominados semelhantes.
A diferença entre o primeiro e o segundo plano modular é, basicamente, relacionada à alterações temporais quase imperceptíveis.
(palavras ilegíveis), a não ser, por exemplo, por um cansaço maior ao atravessar uma praça que parece maior do que realmente é, ou a sensação de já ter vivido aquela situação específica, provocada por alguma redução abrupta.
tensão do tempo, que se acelera ou e, às vezes, distorções espaciais sutis.
o escriturário (trechos - finalizações)
Com a morte física do ser as membranas dos planos modulares fundem-se e se desintegram sem deixar vestígios.
Um erro comum é acreditar que os planos modulares acompanham a alma do ser em outras esferas de existência.
Não há outras esferas de existência a não ser aquelas delimitadas pelos planos modulares.
Os planos modulares encerram todas as possibilidades.
Com a morte física, os seres animados passam existir, na forma de projeção, em quaisquer planos modulares de quaisquer outros seres animados ou inanimados.
Um erro comum é acreditar que os planos modulares acompanham a alma do ser em outras esferas de existência.
Não há outras esferas de existência a não ser aquelas delimitadas pelos planos modulares.
Os planos modulares encerram todas as possibilidades.
Com a morte física, os seres animados passam existir, na forma de projeção, em quaisquer planos modulares de quaisquer outros seres animados ou inanimados.
domingo, 13 de novembro de 2011
o escriturário (trechos - modelações)
Por analogia ao plano modular material acessível à totalidade dos seres animados e inanimados, os campos modulares podem ser comparados a campos magnéticos esferóides, de amplitude e diâmetro variáveis, delimitados exteriormente por membranas também magnéticas, porém em frequência energética oposta ao do plano nela contido.
É essa inversão bipolar que define a propriedade delimitadora das membranas.
As membranas dos planos modulares do ser e entre os planos modulares de seres distintos são assim denominadas unicamente pela função delimitadora.
O ser em seus planos modulares é sempre solitário.
Nas interseções, geralmente aleatórias, entre planos modulares de seres distintos, o contato direto acontecido no plano modular da realidade palpável repercute nos demais planos da mesma forma que as ondas provocadas pela pedra atirada no meio do lago, perdendo paulatinamente a intensidade à medida que se afastam do epicentro.
O ser só possui materialidade no primeiro plano modular, o da realidade palpável. Porém, só interage, mesmo nos primeiros planos modulares de outros seres, por meio de uma projeção virtual de sua própria materialidade.
É essa inversão bipolar que define a propriedade delimitadora das membranas.
As membranas dos planos modulares do ser e entre os planos modulares de seres distintos são assim denominadas unicamente pela função delimitadora.
O ser em seus planos modulares é sempre solitário.
Nas interseções, geralmente aleatórias, entre planos modulares de seres distintos, o contato direto acontecido no plano modular da realidade palpável repercute nos demais planos da mesma forma que as ondas provocadas pela pedra atirada no meio do lago, perdendo paulatinamente a intensidade à medida que se afastam do epicentro.
O ser só possui materialidade no primeiro plano modular, o da realidade palpável. Porém, só interage, mesmo nos primeiros planos modulares de outros seres, por meio de uma projeção virtual de sua própria materialidade.
o escriturário (trechos - intercomunicações)
Cada ser, e somente um, habita um conjunto de planos modulares, e transita livremente naqueles que lhe são destinados.
Define-se projeção como uma representação, com todas as características sensoriais do ser, exceto sua materialidade.
O trânsito entre planos modulares próprios de cada ser não obedece à regra específica.
Os trânsitos entre os planos modulares são impulsionados pelos estados de ânimo do ser. Tanto psicológicos quanto fisiológicos: por exemplo, sonolência, tristeza, euforia, inquietude, apatia. Esses estados impulsionam o ser romper a camada que delimita um plano modular do outro.
O trânsito entre planos modulares de seres distintos ocorre somente quando há, no plano modular da realidade palpável, qualquer tipo de interação entre os seres.
Porém, a interação não se dá por compartilhamento de planos modulares. Há, sim, interseções entre as membranas que separam os planos de cada ser.
A única exceção ao postulado anterior é a morte física do ser.
Define-se projeção como uma representação, com todas as características sensoriais do ser, exceto sua materialidade.
O trânsito entre planos modulares próprios de cada ser não obedece à regra específica.
Os trânsitos entre os planos modulares são impulsionados pelos estados de ânimo do ser. Tanto psicológicos quanto fisiológicos: por exemplo, sonolência, tristeza, euforia, inquietude, apatia. Esses estados impulsionam o ser romper a camada que delimita um plano modular do outro.
O trânsito entre planos modulares de seres distintos ocorre somente quando há, no plano modular da realidade palpável, qualquer tipo de interação entre os seres.
Porém, a interação não se dá por compartilhamento de planos modulares. Há, sim, interseções entre as membranas que separam os planos de cada ser.
A única exceção ao postulado anterior é a morte física do ser.
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
o escriturário (trechos - os seres pensantes)
Tanto os seres pensantes quanto os não pensantes habitam planos modulares. O número de planos modulares varia de ser para ser. Nunca ocorrem menos que três para os seres não pensantes. A quantidade de planos modulares de cada ser pensante raramente ultrapassa o 9º plano.
Ao contrário do senso comum, a categoria dos seres pensantes não abrange somente a espécie humana.
Da mesma forma, e como confirmação da regra, dentre a espécie humana encontram-se seres não pensantes.
Ao contrário do senso comum, a categoria dos seres pensantes não abrange somente a espécie humana.
Da mesma forma, e como confirmação da regra, dentre a espécie humana encontram-se seres não pensantes.
o escriturário (trechos - os seres inanimados)
Os seres inanimados são aqueles cuja vida existe em estado latente.
Define-se ser inanimado o ser desprovido das características essenciais da vida, desde o nível orgânico às manifestações mais diferenciadas da sensibilidade e do pensamento.
Em razão da sua estabilidade, os seres inanimados restringem-se ao primeiro plano modular do ser.
Em razão de sua estabilidade e imutabilidade, os seres inanimados podem ser reunidos em uma única categoria.
Os seres inanimados somente se transformam por ações físicas exteriores a eles.
Os seres inanimados habitam apenas o primeiro plano modular e são apenas projetados nos demais planos dos seres animados.
Define-se ser inanimado o ser desprovido das características essenciais da vida, desde o nível orgânico às manifestações mais diferenciadas da sensibilidade e do pensamento.
Em razão da sua estabilidade, os seres inanimados restringem-se ao primeiro plano modular do ser.
Em razão de sua estabilidade e imutabilidade, os seres inanimados podem ser reunidos em uma única categoria.
Os seres inanimados somente se transformam por ações físicas exteriores a eles.
Os seres inanimados habitam apenas o primeiro plano modular e são apenas projetados nos demais planos dos seres animados.
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
o escriturário (trechos - realidade tangível & realidade palpável)
Os planos modulares são espécies de camadas que se sobrepõem, como películas ou cascas, à realidade tangível.
A realidade tangível corresponde ao primeiro plano modular do ser.
Por complemento, a realidade tangível é tudo aquilo que circunda o ser.
Acredita-se, erroneamente, que a realidade tangível é um plano modular compartilhado por todos os seres.
Esse erro se dá em razão das características e aparência quase idênticas entre a realidade tangível e a realidade palpável.
A realidade palpável é o ser, em si.
A diferença entre realidade tangível e realidade palpável é a materialidade da última.
A realidade tangível corresponde ao primeiro plano modular do ser.
Por complemento, a realidade tangível é tudo aquilo que circunda o ser.
Acredita-se, erroneamente, que a realidade tangível é um plano modular compartilhado por todos os seres.
Esse erro se dá em razão das características e aparência quase idênticas entre a realidade tangível e a realidade palpável.
A realidade palpável é o ser, em si.
A diferença entre realidade tangível e realidade palpável é a materialidade da última.
quarta-feira, 9 de novembro de 2011
o escriturário - parte 3
A história do escriturário não deu ibope. Nenhum acesso no post. Sequer um “curti” no Facebook. Assim, à moda das telenovelas inadimplentes (redução dos capítulos, extermínio de personagens secundários, mudança de caráter de protagonistas, revelação de segredos mornos ou assassinatos) aborta-se o projeto e anuncia-se, insistentemente, os últimos capítulos e cenas picantes da próxima.
O paper do escriturário suicida caiu nas mãos do chefe do Departamento de Pessoal da repartição. O chefe era um cara legal. Gostava de arte. Literatura. Era espiritualista. Escrevia versos. Tomava aulas de francês. E visitaria os grandes museus da Europa quando se aposentasse.
Além disso o chefe do Departamento de Pessoal redigia, editava, publicava e distribuía, de mesa em mesa, “O Farol”, semanário interno da repartição. Impressionou-se com a profundidade dos escritos do escriturário suicida. Condensou a coluna “causos” (onde publicava as cada vez mais escassas narrativas curiosas enviadas pelos funcionários) para inserir trechos dos escritos filosóficos do ex-servidor, classificados, segundo ele, por “focos temáticos”, a cada semana.
O paper do escriturário suicida caiu nas mãos do chefe do Departamento de Pessoal da repartição. O chefe era um cara legal. Gostava de arte. Literatura. Era espiritualista. Escrevia versos. Tomava aulas de francês. E visitaria os grandes museus da Europa quando se aposentasse.
Além disso o chefe do Departamento de Pessoal redigia, editava, publicava e distribuía, de mesa em mesa, “O Farol”, semanário interno da repartição. Impressionou-se com a profundidade dos escritos do escriturário suicida. Condensou a coluna “causos” (onde publicava as cada vez mais escassas narrativas curiosas enviadas pelos funcionários) para inserir trechos dos escritos filosóficos do ex-servidor, classificados, segundo ele, por “focos temáticos”, a cada semana.
terça-feira, 8 de novembro de 2011
podem me chamar de meg, a medonha
Ele refém voluntário no castelo. Tecendo desculpas & justificativas & mentiras. Banho tomado & perfume & desodorante. Protelando a fuga. Ou esperando o salvador. Ou pronto para ser devorado. O que lhe importa é o papel de vítima.
Lá fora o príncipe-palhaço. Envelhecendo sem obter êxito na empreitada auto-imposta. Os ramos de espinhos crescendo em dobro a cada golpe da espada. Como as cabeças da hidra. Ingênuo ignorando a má vontade do prisioneiro em se ver livre.
...
Hoje estou doido para cometer pelo menos duas das atrocidades psicanalíticas abaixo:
- Barbazul: roer o cotoco de braço ou uns artelhos tenros do ladrão da rosa branca;
- Bruxa: empurrar o príncipe usurpador da virgindade de Rapunzel janela abaixo;
- Madrasta: convencer o pai a dar o sumiço nos pentelhos João & Maria;
- Rainha má: oferecer a maçã envenenada à tola Branca de Neve.
...
Quisera, agora, ter mesmo essa verve. Assumo, admito, bato no peito 3 vezes: estou mais para o incauto Dom Ratão. Que caiu na panela de feijoada na véspera do casamento com a Dona Baratinha que tinha dinheiro na caixinha.
...
Oremos:
Santa-Meg-das-personagens-críveis, se ele acordar e me beijar eu prometo tentar ser uma criatura melhor de agora em diante.
Santo-Máicon-dos-bons-enredos, eu vos suplico: dai-me hoje um final feliz.
Lá fora o príncipe-palhaço. Envelhecendo sem obter êxito na empreitada auto-imposta. Os ramos de espinhos crescendo em dobro a cada golpe da espada. Como as cabeças da hidra. Ingênuo ignorando a má vontade do prisioneiro em se ver livre.
...
Hoje estou doido para cometer pelo menos duas das atrocidades psicanalíticas abaixo:
- Barbazul: roer o cotoco de braço ou uns artelhos tenros do ladrão da rosa branca;
- Bruxa: empurrar o príncipe usurpador da virgindade de Rapunzel janela abaixo;
- Madrasta: convencer o pai a dar o sumiço nos pentelhos João & Maria;
- Rainha má: oferecer a maçã envenenada à tola Branca de Neve.
...
Quisera, agora, ter mesmo essa verve. Assumo, admito, bato no peito 3 vezes: estou mais para o incauto Dom Ratão. Que caiu na panela de feijoada na véspera do casamento com a Dona Baratinha que tinha dinheiro na caixinha.
...
Oremos:
Santa-Meg-das-personagens-críveis, se ele acordar e me beijar eu prometo tentar ser uma criatura melhor de agora em diante.
Santo-Máicon-dos-bons-enredos, eu vos suplico: dai-me hoje um final feliz.
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
sábado, 5 de novembro de 2011
tangerineira
Uma técnica para matar árvores sem levantar suspeitas do Ibama e vizinhos ecorresponsáveis é cortar toda a circunferência da casca, na base do tronco. Isso interrompe os veios que transportam a seiva da raiz para os galhos superiores. Em menos de 3 meses a pobre fenece e asssassino vegetal isenta-se de qualquer suspeita.
Fizeram isso em um pé de tangerina lindo, ainda adolescente, no quintal, antes de eu vir morar na casa. Quando eu me mudei a árvore agonizava. Fungos no tronco e quase todos os galhos secos. E 3 últimos frutos, deliciosos, como último suspiro.
A morte era irremediável. Porém o inconsciente, o além, a intuição ou qualquer coisa que seja, me fez insistir. A árvore queria viver. Eu quis que a árvore vivesse. Tomei a salvação da tangerineira (?) como desafio. Podei os galhos secos. Escovei o fungo, galho por galho. Ignorei, solene, o corte fatal no tronco. Aguei de manhã e à tarde na época da seca. Coloquei terra vermelha. Adubei. Só não conversei com ela porque capricorniano não crê nessas bobagens.
Daí veio o período das chuvas. Com as várias preocupações da finalização da reforma eu me esqueci da tangerineira.
Na quinta-feira passada cheguei em casa pouco antes de entardecer. Desde a gararagem, um perfume forte de flor da infância. Talvez alguma vizinha dama da noite, camélia, jasmim. Ou aromatizante que o lavador do carro experimentou. Ou a cera nova que a faxineira tinha indicado.
Na sexta-feira, idem. O perfume, quase enjoativo, chegava a incomodar. A obrigação do dia era medir o fundo do quintal. Mesmo exausto do trabalho, fui antes de escurecer.
Foi quando me deparei. A própria epifania. Como em um conto de Clarice. A tangerineira toda branca de flor. Milhares de brotos também plenamente floridos. O chão em volta todo branco de pétalas. Abelhas. Insetos. Talvez até um beija-flor. E um ninho de sabiá entre os galhos. Com 3 filhotes. Como nas ilustrações dos livros da infância.
Fizeram isso em um pé de tangerina lindo, ainda adolescente, no quintal, antes de eu vir morar na casa. Quando eu me mudei a árvore agonizava. Fungos no tronco e quase todos os galhos secos. E 3 últimos frutos, deliciosos, como último suspiro.
A morte era irremediável. Porém o inconsciente, o além, a intuição ou qualquer coisa que seja, me fez insistir. A árvore queria viver. Eu quis que a árvore vivesse. Tomei a salvação da tangerineira (?) como desafio. Podei os galhos secos. Escovei o fungo, galho por galho. Ignorei, solene, o corte fatal no tronco. Aguei de manhã e à tarde na época da seca. Coloquei terra vermelha. Adubei. Só não conversei com ela porque capricorniano não crê nessas bobagens.
Daí veio o período das chuvas. Com as várias preocupações da finalização da reforma eu me esqueci da tangerineira.
Na quinta-feira passada cheguei em casa pouco antes de entardecer. Desde a gararagem, um perfume forte de flor da infância. Talvez alguma vizinha dama da noite, camélia, jasmim. Ou aromatizante que o lavador do carro experimentou. Ou a cera nova que a faxineira tinha indicado.
Na sexta-feira, idem. O perfume, quase enjoativo, chegava a incomodar. A obrigação do dia era medir o fundo do quintal. Mesmo exausto do trabalho, fui antes de escurecer.
Foi quando me deparei. A própria epifania. Como em um conto de Clarice. A tangerineira toda branca de flor. Milhares de brotos também plenamente floridos. O chão em volta todo branco de pétalas. Abelhas. Insetos. Talvez até um beija-flor. E um ninho de sabiá entre os galhos. Com 3 filhotes. Como nas ilustrações dos livros da infância.
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
reencontro com leitura da adolescência
imagem de www.dream-exchange.blogspot.com |
(Ray Bradbury, do prólogo de "O Homem Ilustrado", em Recordações do Futuro )
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
paradoxo
Pablo Picasso - Femme au Miroir |
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
se perguntassem como eu me sinto agora
(de http://dream-exchange.blogspot.com) |
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